quarta-feira, 23 de março de 2011

....garantindo o exercício de direitos....

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Juízes começam a superar armadilhas do positivismo, pelas quais estariam obrigados a aplicar todas as leis, menos as fundamentais, e apreciar todos os conflitos, exceto os políticos.





Durante longo período, o dogmatismo estabeleceu limites ao Judiciário, como aplicador neutro e apolítico de normas positivas, afastando-o do questionamento sobre valores, como de resto a própria teoria de um direito puro. Não é preciso ir longe para ver o desatino. Bastam as atrocidades praticadas quando nazismo e fascismo vigoraram sob estruturas formalmente legais.

No pós-guerra, germinou a idéia do novo constitucionalismo, moldado à luz da dignidade humana e com a incorporação, pelo Estado de bem-estar, de pautas econômicas e sociais. As novas Constituições passaram a assegurar expressamente o direito à educação, saúde, cultura e outros.

A revanche do positivismo, expressão do conservadorismo jurídico, deu-se com a teoria das normas programáticas, segundo a qual esses novos direitos eram meras "cartas de intenção" e só seriam aplicáveis quando ou se transformados em leis.

Premidos pelos conflitos da vida real, com a insuficiência dos critérios propostos pela dogmática jurídica, os juízes começam a superar armadilhas do positivismo, pelas quais estariam obrigados a aplicar todas as leis, menos as fundamentais, e apreciar todos os conflitos, exceto os políticos.

Devem fazê-lo, sobretudo, por três motivos: a) princípios também são direitos, superiores às leis, pois previstos na Constituição; b) nenhuma lesão de direito pode deixar de ser apreciada, cláusula pétrea que representa o direito aos direitos; c) a função do Judiciário é impedir o abuso de poder, limitando a atuação dos demais poderes aos termos da Constituição.

É disso que trata a obrigatoriedade que vem sendo imposta ao Executivo, em decisões judiciais, quanto ao fornecimento de remédios a pacientes com gravíssimas moléstias e sem condições de adquiri-los. Situações-limites, nas quais muitas vezes a recusa pode significar a morte. No fundo, é uma questão relativamente prosaica, que, ante o tradicionalismo jurídico, ganha ares revolucionários: tutelar os direitos é garantir o seu exercício.

Se a Constituição determina que saúde é direito de todos e dever do Estado, impõe o acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção e se funda na diretriz do atendimento integral, não pode o direito ser restringido por administradores.

Se o direito ao tratamento é direito à saúde, como negar que o acesso a medicamentos indispensáveis à vida também seja obrigação pública?
Ao Estado incumbe a adoção de políticas públicas que permitam ao indivíduo o gozo desses direitos, alocando verbas suficientes para a inclusão social que determina a Constituição, em detrimento de outras despesas menos relevantes, ainda que politicamente mais recompensadoras. Em relação aos direitos humanos de primeira geração, limitar o abuso do poder é impedir mecanismos que constranjam a liberdade. Aos direitos de segunda geração, como educação e saúde, é determinar a realização da prestação pública. Nesse caso, omissão é a própria violação do direito.

O STF começa agora a analisar a questão dos remédios. Tem importante precedente sobre políticas públicas em que se ancorar. Julgando o recurso extraordinário nº 436.996, acerca da obrigatoriedade de vagas na educação infantil, a Corte Suprema já decidiu que é possível ao juiz determinar a implementação de políticas públicas sempre que órgãos estatais comprometerem, com a omissão, a eficácia de direitos sociais.

Como se vê, a discricionariedade do administrador não é absoluta. Há uma pauta de ações sociais a que está vinculado pela Constituição, formando um mínimo de exigências que asseguram a dignidade humana. Prestações sociais não são meras decisões de conveniência e oportunidade.

O ativismo judicial não é propriamente novidade, ainda que utilizado com excessiva parcimônia por aqui. Nos EUA, foram decisões da Corte Suprema que abriram espaço para o fim da segregação racial. Entre nós, vários temas saíram das lides para mudar a lei: proteção aos direitos da companheira e incorporação de crianças de seis anos ao ensino fundamental, entre outros. Quiçá o direito à saúde saia fortalecido da discussão.

[artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo]

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