sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Ives Gandra e a Comissão da Verdade

Este é o artigo publicado por Ives Gandra na Folha de São Paulo, referido no post "John Rawls e a Comissão da Verdade", publicado no BLog Sem Juízo. Vale a pena ler a resposta de Marcio Sotelo Felippe em nome da prevalência da razão democrática e os direitos humanos.




Sou um admirador das séries de "Star Trek". Suas edições refletem muito a história da humanidade. Os Borgs são um povo de humanos robotizados e respondem a um comando central único, que pretende ""assimilar" todos os povos do universo. Assimilar é fazer com que pensem rigorosamente como eles e obedeçam como uma só unidade. Senão, são mortos.

Os Borgs representam as ditaduras ideológicas, que não admitem contestação e que procuram dominar os povos, eliminando as oposições e as verdadeiras democracias. Se a 1ª Guerra Mundial foi um embate pela realocação de poderes na Europa, a 2ª Guerra já foi uma guerra entre as democracias e os regimes totalitários (alemão, italiano e russo, visto que, no início, Stálin apoiou Hitler na invasão à Polônia).
A vitória de princípios democráticos naquele conflito, que gerou a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10/12/1948, nem por isso eliminou essa luta permanente entre ideologias totalitárias, que não admitem contestação e que continuam poluindo a convivência das nações e das democracias.

Rawls, em dois de seus livros, "Uma Teoria da Justiça" e "Direito e Democracia", mostra que a democracia só pode ser vivida se as teorias políticas não forem abrangentes em demasia e possam conviver, em suas diversidades, com outras maneiras de pensar. Teorias abrangentes provocam a eliminação dos opositores ou a "assimilação", no estilo dos Borgs da "Star Trek", daqueles que vivem sob seu jugo. Estamos no início de um novo governo, tendo a presidente sinalizado, mais de uma vez, que quer fazer um governo de união, mas com respeito aos opositores. Não creio que a Comissão da Verdade venha auxiliar muito esse seu projeto, na medida em que, sobre relembrar fantasmas do passado e rememorar dolorosos momentos de história em que militares e guerrilheiros torturaram e mataram, tende a abrir feridas e a acirrar ânimos.

Como ex-conselheiro da seccional de São Paulo da OAB, durante seis anos no período de exceção, estou convencido de que com a arma da palavra fizemos muito mais pela redemocratização do que os guerrilheiros com suas armas, que, a meu ver, só atrasaram tal processo. À evidência, sou favorável a que os historiadores -e não os políticos- examinem, pela perspectiva do tempo, o ocorrido naquele período, pois não são os políticos que contam a história, mas, sim, aqueles que se preparam para estudá-la e examinam-na sem preconceitos ou espírito de vingança. Apoio, entretanto, o entendimento do ministro Nelson Jobim de que, se for instalada Comissão da Verdade, ela deve refletir o pensamento dos dois lados do conflito.

Tenho fundados receios de que uma pequena ala de radicais, a título de defender "direitos humanos" por um único e distorcido enfoque -e os vocábulos permitem uma flexibilização infinita para todos os gostos-, pretenderá "assimilar", à maneira dos Borgs na "Star Trek", todos os que não pensem da mesma maneira, transformando uma Comissão da Verdade em Comissão da Vingança. Pessoalmente, como combati o regime de então -sofri em 1969, inclusive, pedido de confisco de meus bens e abertura de um IPM (Inquérito Policial Militar), processos felizmente arquivados- e participei da Anistia Internacional, enquanto tinha um ramo no Brasil, por ser visceralmente contra a tortura, sinto-me à vontade para criticar a "ideologização" dos fatos passados, a meu ver enterrados com a Lei da Anistia, de 1979. Que os historiadores imparciais -e não os ideólogos- contem a verdadeira história da época, pois são para isso os mais habilitados.


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IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 75, advogado, professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra, é presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio. Artigo publicado hoje, na Folha de São Paulo

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Diabo

DIABO - José Américo Rodrigues Gomes dos Santos


Para o jornal do bairro não adiantava mandar mais nada. Eles simplesmente ignoravam a matéria e não davam satisfações a ninguém. Escrever, ele escrevia, com muita correção. Sabia usar a crase, a colocação dos pronomes, acentuação, vírgulas, sintaxe perfeita, nada de erros de ortografia. Sabia tudo. Até figuras de linguagem, que são muitas e com nomes complicados.

Seu sonho era ser escritor, mas ninguém se interessava pelas coisas que escrevia: crônicas, contos, poesias, pequenas recordações. E tudo tudo. Tudo de um tudo.

O jornal do bairro nem sequer se dava ao trabalho de acusar o recebimento do escrito e justificar as razões de sua não publicação. Não o publicavam e não se explicavam.

Comparou uma crônica publicada com outra de sua autoria. A sua era infinitamente melhor. Mas que critérios serviriam de norte para se aceitar ou recusar um trabalho, já que a sua, que era melhor a olhos vistos, fora preterida por outra, enfadonha, cansativa? Sentiu-se injustiçado a mais não poder.

Resolveu pôr tudo em pratos mais ou menos limpos. Foi à sede do jornal e indagou a respeito do responsável ou responsáveis pela seleção dos textos. Era uma moça bonita, de uns trinta e cinco anos. Peituda, mamilos perfurando a camisa, chegava a dar tesão. Mas ele não estava ali para aquilo. A senhorita pode explicar-me porque a minha crônica foi recusada, e outra, muito inferior, perdoe-me a exacerbada modéstia, foi publicada? Eu concordo com o senhor, seu texto deixa no chinelo o outro, mas havia razões que nos levaram a optar por ele, medíocre, por sinal. O pai do moço que escreveu aquela crônica é grande anunciante do jornal, se não o maior, um dos três maiores. Não podíamos magoar seu filho. O pai veria naquilo uma grande afronta feita, a si. Perdíamos o anunciante e a amizade. A amizade vá lá, mas o dinheiro dos anúncios, esse não podíamos perder. Não se iluda: os textos não são escolhidos pelo seu valor literário, mas por interesses outros, como o que acabo de citar. Não são só os recusados que se aborrecem. Muita vez nós, do jornal, também ficamos revoltados ao ver que jovens e promissores talentos, com uma mãozinha nossa, são relegados ao esquecimento. Até já pensamos em reparar essa tão reiterada injustiça com a publicação de todos os escritos não publicados, forma de render homenagem aos injustiçados. Seria uma edição de luxo, até pensamos em capa dura. Mas a crônica falta de dinheiro não permite que a merecida homenagem seja prestada. Lamento muito, mas se a direção do jornal mudar, quem sabe, mudarão também as diretrizes estéticas. Não é concebível que o metal vil se sobreponha à estética. Artistas têm que ser respeitados. Tente alguma editora pequena, dessas que gostam de lançar novos talentos. Estou certa de que a qualidade de sua escrita vai levá-lo muito longe, pô-lo nas alturas. Despediu-se amavelmente, pôs-lhe a mão no ombro e acompanhou-o até a saída.


Depois retornou a sua sala e disse para quem a quisesse ouvir: É aquele pentelho que está sempre mandando coisa. Quando não é uma crônica é um conto. Quando não é um conto é uma poesia. Tudo daquele jeito piegas, chato, imbecil. Sinto enjoo quando leio, por obrigação, o que ele escreve. Mas agora estou mais esperta. Logo que começo a leitura e noto que é coisa dele paro de ler. Afinal, não sou nenhuma masoquista. Mas a melhor vocês não sabem. Ele se julga um gênio incompreendido, diz que seu talento não é reconhecido, que ninguém mais entende de literatura. E mostrou em sua crônica duas figuras de linguagem que empregara. Uma delas, por sinal, abominável, mais parece barbarismo do que figura de linguagem. É um tal de anacoluto, que só a ignara ralé emprega: o Brasil, ele é o celeiro do mundo. Bastava o Brasil. A troco, esse ele? Só para dizer que é anacoluto. Coisa mais horrorosa. E ia nesta toada, tirando gargalhadas dos que a ouviam.

Não desanimava com facilidade. Selecionou os seus melhores contos e começou a percorrer as editoras todas, pequenas ou grandes. Não entendera muito bem aquela história de começar com uma editora pequena. Não queria ser tachado de alternativo. Almejava o sucesso, a fama, a riqueza, grandes tiragens, não três mil exemplares, como sói acontecer, mas algo na casa dos trinta mil, isso para começar. Depois, teria sua obra traduzida para, no mínimo, no mínimo, trinta e sete línguas. Aí as tiragens já se contariam pelos milhões. Tudo conseguiria com sua inigualável escrita, único dom que possuía. Sonhava com a glória. Embriagava-se com a fama que teria, mais dia, menos dia.

As editoras não o chamavam. Não o chamaram. Explicavam que tudo já havia sido explicado: os originais não seriam devolvidos aos seus autores e não se sentiam obrigadas a falar dos critérios que nortearam a seleção.

Estas adversidades, ao invés de abatê-lo, renovavam-lhe as esperanças. Aquela gostosa do jornal do bairro não elogiara tanto o seu trabalho? É claro que ele tinha valor. Só um cego não veria isso. Ele se imaginava no mais luxuoso hotel de Dubai a preencher uma ficha e a escrever no campo destinado à profissão: escritor. Seria, ou não, a glória?

Se por um lado era todo entusiasmo, por outro não podia deixar de notar que todas as portas lhe eram fechadas. Primeiro, o jornal do bairro. Pelo menos enquanto não mudasse a direção. Depois, as editoras, todas, grandes e pequenas, até médias.

Ou seria escritor famoso ou não seria nada. Não tinha plano B. Era vencer ou vencer. A Academia não o empolgava, conhecia muitos acadêmicos obscuros.

Começou a entrar em salas de bate-papo na internet e a tecer relações virtuais. Sexo, sexo, sexo era o que rolava. Muita perversão. Muita bizarrice. Dava-se, porém, que vez que outra topava com leitor compulsivo que só fala de livros, livros, livros. No vem e vai da conversa arranjava jeito de dizer que escrevia, quer que lhe envie um conto que escrevi? Então vou mandar, depois você me responde, dizendo o que achou. Escolhia seu melhor trabalho e o encaminhava ao ávido leitor por e-mail. Estava certo de que receberia muitos elogios – aliás, merecidos – mas queria conhecê-los em toda a sua extensão. Às vezes os críticos veem, nas obras, preciosidades que nem o autor se dá conta. Esta é a marca do gênio. Criar o belo, mesmo que inconscientemente. No dia seguinte corria ao computador e: nenhuma mensagem nova. Nos dias seguintes a mesma coisa. E assim passam os dias e ele perguntando, perguntando, querendo resposta para o manifesto desinteresse.

Depois, a desconfiança, o temor: e se aquele a quem fora mandado aquele conto não passasse de um salafrário, que incitava os incautos a lhe mandarem textos e, depois de selecioná-los, os registrava como de sua autoria? Paranóia? Uma pinóia. Há tratantes bem capazes de fazer isso, na cara dura. Depois, como poderia ele provar que o verdadeiro autor da obra era ele, não o meliante?

Como nada se resolvesse neste mundo, voltou-se para o além, apegando-se a santos e fazendo promessas.

Santo Expedito era muito falado, tido e havido como o santo das causas impossíveis. Não era bem o seu caso. A causa seria impossível se ele não tivesse talento, mas ele tinha-o de sobejo. Só lhe faltava um empurrãozinho, um bafejo de sorte. Para que o santo não achasse que estava sendo pressionado, deu-lhe o prazo de um mês para obter a graça, ou seja, a publicação de qualquer trabalho seu em qualquer jornal ou editora. Valia até jornaleco. Alcançada a graça, mandaria imprimir vinte mil santinhos do santo, com sua oração no verso. O santo deve ter pensado o mesmo que ele. Aquela não era uma causa impossível, estando, portanto, fora de sua alçada. No fundo, no fundo, ele entendeu as razões do santo, que, por sinal, não diferiam das suas. Se a pessoa tem talento, como no seu caso, não seria impossível alçá-la às alturas.

Como nada conseguiu com Santo Expedito, voltou-se para São Judas Tadeu, que resolve casos difíceis, patrono das causas impossíveis. Reina alguma confusão entre os santos. Não é o Santo Expedito o patrono das causas impossíveis? E como se explica que São Judas Tadeu também o seja? Quem está usurpando atribuições de quem? Bem, mas como o santo também resolvia casos difíceis, quem sabe se, por esse viés, não seria alcançada a graça. Sua causa não era impossível – já foi dito – mas parecia difícil. Fez a mesma promessa que havia feito ao outro santo, para que nenhum deles se sentisse magoado. Tudo resultou em nada. Talvez o santo andasse muito ocupado em resolver causas impossíveis, com as quais não tinha nada a ver, relegando para o esquecimento as causas difíceis.

Pensar em Deus, que é bom, nada.

Ocorreu-lhe que o seu caso melhor seria resolvido por uma santa. Há-as tantas que uma delas bem que poderia resolver o seu problema. Santa Rita de Cássia, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora de Fátima. A sua herança lusitana fez com que se lembrasse até da Senhora do Almortão, ó minha bela arraiana, virai costas a Castela, não queirais ser castelhana. Senhora do Almortão, eu pro ano não prometo, que me morreu o amor, ando vestida de preto.


Tudo bem considerado, não valia a pena pedir o que quer que fosse a uma santa. Se os santos, que são homens e vigorosos, não resolveram nada, como é que elas, frágeis mulheres, exceto a Santa Joana D’Arc, é claro, poderiam resolver.

Melhor abandonar esse caminho dos santos e ir para outras paragens.

Umbanda? Candomblé? Sem chance. O que é que uns orixás negros, iletrados, poderiam entender de literatura? Boa literatura, diga-se.

Abandonava os santos e os orixás, mas não o sonho de se tornar grande escritor, reconhecido pela crítica do mundo inteiro. Quem sabe um prêmio Nobel? Não era fora de propósito. Afinal, gente que produzia literatura muito inferior à sua já tinha sido laureado. Melhor nem dizer quem, que os artistas melindram-se por dá cá aquela palha.

Estava acuado. Vontade de atirar-se do Viaduto do Chá. Só não o fazia porque não estava mais na moda. O entusiasmo dera lugar à desolação. Não sabia mais o que fazer. Matutava, matutava e nada.

Um dia, o estalo. Como é que não tinha pensado nisso antes, coisa tão clara, tão evidente, e nem sequer se lembrara, ligeiro pensamento que fosse.

Essas coisas de fama, glória, reconhecimento do público e da crítica, fortunas, rios de dinheiro, tiragens de milhões de exemplares, traduções em um sem número de línguas, essas coisas não eram da seara dos santos, mas do Diabo. Até estranhou que este já não lhe tivesse aparecido para lhe propor um pacto: tudo o que ambicionava em troca de sua alma. O Diabo era conhecido por sua generosidade: dava às pessoas com quem fazia acordo tudo o que elas almejavam e muito mais, coisas que nem supunham existir, que não pediram mas lhes eram dadas para que seus sonhos se realizassem e superassem todas as expectativas.

O preço era alto, sabia, o mais alto que alguém pode pagar. Entregar a alma ao diabo, ir depois para o inferno, na mais completa danação. E por toda a eternidade. E a eternidade é muito tempo, é todo o tempo. Analisada a questão por outro ângulo, tem-se perspectiva diferente. Será que o inferno é tão ruim assim como o pintam. Se se for analisar direito, chega-se à conclusão de que só vão para o céu as pessoas chatas, as certinhas. Deve ser um tédio sem fim. Pessoas interessantes vão para o inferno, pelo visto. Gente mais alegre, mais porra-louca, drogados, prostitutas, cafetões. É, até drogados. O Papa não acaba de criar mais esse pecado? O que está no Gênesis é que Deus fez as ervas e viu que elas eram boas. Agora vem o Papa e diz que usar erva é pecado. Será que ele não está querendo ser mais divino do que Deus? A Madre Tereza de Calcutá, o Frei Damião, Doutora Zilda Arns e afins devem estar no céu. Mas que tipo de conversa se pode ter com eles? Já Michael Jackson deve estar no inferno. Afinal, molestava crianças e consumia drogas, no céu não pode entrar. E no inferno não fará shows, exibindo a sua linda dança? A Madona no céu não combina. Nem a Billie Holiday, com as veias entupidas de tanta heroína. Se a questão for companhia, parece que no inferno está-se melhor. E também dizem que não se encontra um bom lugar no céu. Os melhores lugares já foram ocupados pelos caldeus, egípcios, sumérios, gregos, romanos, etruscos. Não se encontra lugar que preste.

O pacto tinha os seus prós e contras. Era preciso pensar bem, talvez essa fosse a decisão mais importante de sua vida. Não, essa não era a mais importante decisão. A mais importante era tornar-se escritor renomado, assediado, querido, amado, premiado muitas vezes.

Definida a questão mais importante, o dilema, faço ou não o pacto, resolve-se sozinho. Decidiu ser escritor e arcar com todas as conseqüências, que, como se viu, podiam nem ser tão funestas.

Estava decidido. Faria o pacto.

Em casos assim, a iniciativa costuma partir do Diabo. Até estranhava não ter sido procurado ainda. De qualquer maneira, não deveria ser tão difícil topar com o Diabo e perguntar-lhe se ele aceitaria fazer o pacto. Oferta tão generosa não poderia ser considerada falta de educação. O Diabo era experiente, não ficaria ofendido se lhe fizessem uma proposta que todos sabem que ele vive fazendo. Cumpria achar o Diabo.

Dizem que o Diabo mora nos detalhes. Mas, como ele não conhecesse nenhum detalhe, por essa via não o encontraria.

À noite, em seu quarto, num misto de emoção e medo, resolveu fazer a invocação. Fê-la da forma mais singela possível. A única dúvida que teve residia em saber se ao invocar o Diabo deveria olhar para o alto ou para baixo. Por tudo o que lhe ensinaram o céu ficaria lá no alto. Assim, o inferno deveria ficar em lado oposto, nas profundezas. Em dúvida sobre como proceder, não achou bem invocar criatura tão poderosa encarando o chão. Por razão óbvia, também não podia olhar para o alto. Ficou num meio termo, olhando para a frente. A invocação, que já deveria estar preparada e decorada, foi improvisada depois de alguns momentos de reflexão. Tremia. A voz parecia não querer sair da garganta. Até que tomou coragem: Apareça, poderoso Diabo, diante deste seu humilde servo que lhe quer entregar a alma. Esperou, apreensivo, mas nada aconteceu, ninguém apareceu.

Estava intrigado com aquele fato, de ninguém se ter apresentado, principalmente em se tratando de ente que dizem estar em todo lugar. Pensava no que poderia ter feito de errado. Estava perdido em seus pensamentos e no meio destes veio o seguinte: o Diabo é conhecido por muitos nomes, todos sabem disso. Quem sabe ele não esteja mais atendendo pelo nome de Diabo. É preciso fazer nova invocação, com nomes diferentes.

Satisfeito com a invocação que preparara, concisa, clara, nada rebuscada, nada barroca, pôs-se a fazê-la, mas dizendo outros nomes: Satanás, Satã, Lúcifer, Anjo Rebelde, Belzebu, Bruxo dos Infernos, Dragão, Espírito das Trevas, Gênio do Mal, Príncipe das Trevas, Serpente Infernal, Arrenegado, Atentado, Bode Preto, Capeta, Cão-Tinhoso, Coisa-Ruim.

Os chamados, com nomes tão diferentes, não resultaram em nada. Ninguém apareceu, nem ao menos um representante. Outros nomes tinha o diabo, mas se não atendera ao chamamento dos principais, decerto tinha farejado o negócio e não se interessara por ele. Estará a minha alma valendo tão pouco que nem o Diabo a quer? E mais: ele nem conhece a minha proposta. Poderia ser um negócio altamente lucrativo para ele eu prometer, além da minha alma, mais umas três ou quatro. As das empregadas. A do vigilante da rua. Estes se contentariam com um pequeno aumento de salário. Até já ouvi uma das empregadas dizer que ia cuidar do corpo porque a alma não tinha mais jeito.

Talvez eu devesse acender algumas velas pretas e vermelhas, cores de Exu, que não é Diabo, mas é tido como tal.

Fiz tudo errado. O caminho estava diante de mim e eu consegui a proeza de não o ver. Agora eu via tudo com clareza. Essa história de que Satanás está em todos os lugares é pura balela. Ninguém consegue ser tão façanhudo. Ele tem que ser procurado em sua habitação. Onde? Onde? Só pode ser num lugar: A Caverna do Diabo.

Agora eu consigo trazê-lo. Não há como errar. Viagem cansativa ao Município de Eldorado, interior de São Paulo. Entrando na caverna avançou muito em seu interior. Trouxe velas pretas e vermelhas, que acendeu, mesmo não achando necessário. Nunca se sabe. Invocou-o pelos seus nomes todos. Tudo em vão. Tudo debalde. Não apareceu nem mandou representante, um diabinho de segundo escalão que fosse. Nem isso.

Nada mais fazia sentido. Todos sabem que o Diabo é louco por uma boa alma. Fausto não me deixa mentir. Ele pensava, pensava e pensava. O que teria ocorrido? Um pensamento diabólico dominou-o. Era isso! Só podia ser isso! O Diabo não apareceu porque sabia que, com seus pensamentos, invocações, disposição para o pacto, com tudo isto ele já lhe entregara a alma. Bem pecaminosa tinha sido a sua conduta, suficiente para mandá-lo para os quintos dos infernos por toda a eternidade. O diabo, com cálculo satânico, deve ter pensado: por que comprar uma alma se a posso ter de graça.

Ao pensar nisto, indignou-se com o Coisa-Ruim, por se julgar tão ardiloso, tão arguto, tão cheio de si. Comportamento diabólico, digno do Príncipe das Trevas. Mas ele conseguiu atinar com o motivo real da sua falta de interesse em negociar a alma. Só dependia de ele passar o Diabo para trás. E foi o que fez. Assim ele deixaria de ser besta, mesmo continuando a ser a Besta.

Com toda a força dos seus pulmões, três vezes tuberculosos, lançou contra Satã três versos de sete sílabas: Não quis comprar minha alma?! De graça não vai levar! Diabo filho da puta!


Depois, entrou numa igreja, confessou seus pecados, arrependeu-se, foi absolvido e cumpriu a penitência que lhe foi imposta.


Continuarei a minha luta. Estou certo de que ainda serei um escritor de nomeada. Serei, não. Já sou. E tenho outra qualidade: Sou muito modesto.