Prisionalização que não combate a seletividade.
Recrudescimento da execução. Eficácia que esvazia até o processo.
Eles se propuseram a fazer um código sem
ideologias. Pragmático, mais que dogmático. Atual, mais do que isso, moderno. Naufragaram – o projeto do Código Penal faz
água por todos os lados.
Não por ser simplesmente reacionário -está
salpicado de boas intenções, aqui e acolá, reduzindo certas penas e expungindo
parte da punição moral do direito.
Mas não deixa de ser um adepto incondicional
da eficácia.
Acredita em demasia no direito penal e em seu
poder simbólico -por isso mesmo não se constrange em mantê-lo grande, nem se incomoda
com o intenso recrudescimento da execução penal e as tétricas consequências que
pode provocar com isso.
Como toda obra com decisiva influência do
marketing, não entrega aquilo que promete.
Deseduca, ao perseverar na ideia de um
direito penal majestoso, que responda a todos os problemas e seja a solução
para a criminalidade.
Flerta com o autoritarismo, ao trazer para o
campo penal a solução dos mais variados conflitos, e é mais inepto sintomaticamente
onde inova.
A incorporação de teorias soa às vezes, incômoda,
mas a redação de novos tipos demonstra ainda mais imprecisão.
O projeto abre mão de conceitos para abraçar
o mundo em busca da eficácia, e em certas situações se vê a meio caminho do
grotesco.
Que se pode dizer de um código gigantesco,
que ainda encontra condutas para criminalizar, que se torna mais extravagante
que a legislação que incorpora e que é dedicado, na apresentação de seu
relator, a duas vítimas infantes de crimes de grande repercussão?
Um trabalho que joga para a plateia -e como
se espera de todo esse apego demagógico, resulta em um estrondoso fracasso de
crítica.
O projeto é um espelho de sua produção. Seus
juristas mais falaram que ouviram; deram mais entrevistas que debates. Buscaram
reproduzir nas suas votações internas os consensos e conflitos de acadêmicos
que não escutaram.
Ao final, o texto é apressado, confuso e,
muitas vezes, contraditório.
Pretensioso, ainda esvazia o processo penal,
estilhaçando sua noção de garantia, através do utilitário instituto da
barganha.
Tem avanços, em especial ao reduzir a tutela
da propriedade. Mas é tímido em alguns acertos e tíbio quando se obriga, em
razão destes, a ceder a cada momento ao rigorismo, especialmente na execução
penal. Dá, enfim, algumas no cravo, outras tantas na ferradura.
Ao final, o trabalho não se compromete nem
mesmo com suas próprias bandeiras. Sua criminalização não atende aos princípios
que estipula. Suas concessões a um direito penal máximo comprimem acertos. Ademais
da falta de ideologia, portanto, o pragmatismo também se sai fortemente
ameaçado.
Sem a pretensão de um trabalho exaustivo
(pois exaustivo demais é o próprio projeto), compartilho algumas das principais
preocupações após uma primeira impressão.
Somadas as críticas já veiculadas de
comentaristas mais gabaritados, só se pode concluir que o atual estágio de tramitação
está anos-luz na frente de onde o texto merecia estar a esta altura: proposta
para começar a discussão, jamais um projeto na iminência de se transformar em
lei.
Não cabe aqui acolher a escusa da imprudência.
Se o Código Penal é, como diz o presidente de
sua comissão, a lei mais importante abaixo da Constituição (e por aí já se vê o
prestígio exacerbado que a comissão deu a seu mister e ao próprio direito penal)
ela jamais poderia ter caminhado dessa forma tão sobranceira e auto-referente.
1-) Prisionalização e
seletividade
O principal defeito do
sistema penal brasileiro não é a impunidade –mas a seletividade. Faltam vagas
para a extensa população carcerária, que cresce a cada dia –mas não há
pluralidade de classes nas celas.
Elaborar um Código Penal
significa, em primeiro lugar, ter em mente este problema, bem ainda as
consequências da força do instrumento que é. Como a experiência tem nos
mostrado, enrijecer o sistema penal em busca de nova clientela dificilmente
resolve o problema da seletividade, pois os princípios do rigor, mais hora,
menos hora, acabam sendo replicados também aos mais vulneráveis que contam com
o outro lado da seletividade –a maior fiscalização e a menor possibilidade de
defesa.
Só a diminuição do direito
penal permite reduzir o impacto gravoso do Estado sobre a população mais
carente. Mas em alguns momentos, o candidato a legislador parece agir com
alguma espécie de privação de sentidos. Ou não consegue compreender o caráter
nocivo do direito penal ou, premido pela expectativa social que quer afagar,
não consegue se comportar de acordo com essa compreensão.
Assim, em que pese visíveis
esforços em um sentido de retração da prisionalização (reconheça-se, por
exemplo, em certas normas da parte geral e na redução de pena de tipos como
furto e roubo), são estes mais tímidos do que poderiam e em regra acompanhados
de concessões que, se não os esvaziam de todo, buscam compensações em outros
cantos, como a dizer: se eu baixo aqui, tenho de aumentar ali. Mais um reflexo
da propalada falta de ideologia.
É o caso, por exemplo, da
tentativa.
Estranhamente inserido na
Parte Geral, dispositivo sobre tentativa de crimes patrimoniais refuta
interpretação civilista que vem ganhando terreno na jurisprudência a partir de
decisões dos tribunais superiores: nos
crimes contra o patrimônio, a inversão da posse do bem não caracteriza por si
só, a consumação do delito (art. 24, § único).
Mas a exposição de motivos
se apressou em dizer, ao mesmo tempo, que não
se preconizou a adoção do ponto de vista rival, segundo o qual apenas da posse
‘mansa e pacífica’ adviria o aperfeiçoamento do tipo penal, fulminando, por
uma espécie de interpretação quase-autêntica a leitura mais tradicional do
instituto. Não se sabe bem ao certo aonde o legislador procurou chegar, então.
O Código reconhece, enfim, o
princípio da insignificância, trazendo à lei critérios que vem sendo utilizados
pela jurisprudência do STF. Pela imensidão de insignificâncias que a redação
exige (mínima ofensividade da conduta,
reduzidíssimo grau de reprovabilidade,
inexpressividade da lesão) muito
provavelmente vai levar o intérprete que naturalmente o exclui por falta de
previsão a exclui-lo por ausência de seus requisitos –e ainda pode constranger
os que já o aplicam. Não à toa, o infeliz exemplo trazido pela Exposição de
Motivos foi justamente a do furto de
alfinete...
Paradoxalmente, no âmbito
dos crimes tributários, o princípio da insignificância é mais bem tratado: não há crime se o valor correspondente à
lesão for inferior àquele usado pela Fazenda Pública para a execução fiscal
(art. 348, §8º).
Aqui, não se preocupa mais
com a mínima ofensividade da conduta ou com o reduzidíssimo grau de reprovabilidade.
Basta o valor. Ah, a seletividade...
O projeto define, na esteira
da jurisprudência do STF, os limites dos antecedentes
criminais, para afastar a inconstitucional aplicação de processos em
andamento ou condenações recorríveis, e ainda estabelece a caducidade dos maus antecedentes, nos mesmos padrões da
reincidência.
Mas de outra parte, transfere
os antecedentes das circunstâncias judiciais para o status de circunstância
agravante (de aplicação obrigatória).
Ao mesmo tempo em que permite
que o juiz possa desconsiderar a
reincidência quando o condenado já tiver cumprido a pena pelo crime anterior e
as atuais condições pessoais sejam favoráveis à ressocialização (art. 79
§único), impõe que essa mesma condenação seja utilizada como circunstância
agravante (art. 77, II).
O projeto permite que a
circunstância atenuante possa levar à fixação da pena-base abaixo do mínimo
(quando houver aplicação de uma causa de aumento, art. 84, §3º) –todavia, esvazia
a própria circunstância atenuante ao extrair a menoridade relativa de suas
causas, além de levar a idade do idoso atenuado a setenta e cinco (em franca
contradição, aliás, com a redução dos prazos prescricionais, em que permanecem
íntegras a influência da menoridade e da idade de setenta anos, art. 115).
Permite, enfim, o Código que
o juiz excepcionalmente diminua a pena em
virtude das circunstâncias do fato e consequências para o réu, mas talvez
em face de um constrangimento ao fazê-lo, os autores inauguram uma fração
abaixo de seu mínimo tradicional: 1/12!
Aliam-se a esses
dispositivos benéficos ma non troppo¸
a redução da pena de furto e roubo –também de uma forma constrangida.
O furto simples passa a ter
pena mínima de seis meses. Diferentemente de uma plêiade de tipos em que os
padrões se repetem no Código entre 6 meses e dois anos, neste caso, a timidez
levou os autores a fixarem três anos como máxima, com o propósito inescondível
de impedir que o delito possa ser inserido entre os de menor potencialidade ofensiva –onde de fato deveria estar.
Para não perder a mão apenas
na entrega, o projeto incorpora à extensão da coisa móvel, o sinal de televisão a cabo ou de internet e item assemelhado que tenha
valor econômico –resolvendo, de forma mais gravosa antigo dissenso
jurisprudencial.
E, pior, abre mão do próprio
sentido de crime contra o patrimônio,
ao inserir uma inusitada equiparação à coisa móvel do documento de identificação pessoal. O documento jamais deixou de
ser coisa móvel –sua subtração era atípica apenas pela ausência de valor
patrimonial relevante, o que o dispositivo penal ontologicamente não altera.
As figuras do furto
aumentado ainda se inserem entre aquelas cuja pena não ultrapassa um ano, o que
proporciona consequências positivas (ampliando o campo de incidência da
suspensão processual), mas o projeto continua se rendendo a maior gravidade do furto de veículo automotor com a finalidade
de transportá-lo para outro Estado (resquício vivo da legislação de
emergência que procura combater a nova criminalidade com aumento de pena)
–desbalanceando a tutela, por exemplo, em relação ao furto à residência.
Reduz também a pena do roubo
ao patamar de três a seis anos e corretamente insere o sequestro relâmpago na mesma categoria (eliminando a desproporção
criada por outra lei de emergência penal).
Cria o roubo privilegiado (sem violência real, quando a coisa subtraída
for de pequeno valor e o meio empregado inidôneo para ofender a integridade da
vítima), em que inexiste violência e a ameaça se faz sem emprego efetivo de
arma (por exemplo nas hipóteses de simulação e simulacro) –mas abre a porta
para sua não aplicação ao exigir que também não seja causado à vítima um
impreciso dano psicológico relevante.
A contradição é manifesta
entre o critério objetivo da
lesividade da ameaça (meio empregado for
inidôneo para ofender a integridade da vítima) e a concessão ao critério
subjetivo –que no cotidiano forense pode reduzir enormemente a incidência.
Sua figura qualificada
mantém-se no patamar antigo do roubo simples –mas a timidez mais uma vez evita
excluir-se da hipótese aumentada o concurso
de duas ou mais pessoas que, equiparado desproporcionalmente ao emprego de
arma, é causador frequente de injustiças.
Avanço considerável, e com
enorme atraso, é tratar crimes patrimoniais sem violência como sujeitos à
representação. O projeto agrega a reparação do dano como forma de extinção da
punibilidade –mas sem olvidar o senão de exigir que a vítima antes aceite.
No entanto, todos esses
avanços contidos, essa liberalidade constrangida, essa entrega receosa, podem
resultar em nada diante das regras que tornam, ao mesmo tempo, mais rigoroso o
sistema progressivo de cumprimento das penas –provocando maior encarceramento.
É certo que a lei passa a
permitir a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de
direitos em caso de violência ou grave ameaça, quando a pena se limita a dois
anos (art. 61, II, b), mas, em contrapartida, veda o ingresso no regime aberto para
crimes com violência ou grave ameaça de 2 até 4 anos (art. 49, III, em claro
retrocesso com o panorama atual).
E ainda cria outros padrões
para a progressão de regime (art. 47): um terço da pena para o condenado
reincidente, se o crime for cometido com violência ou grave ameaça ou a
genérica hipótese de crime que causa grave
lesão à sociedade (que consegue a proeza de tornar indefinido o prazo para
a progressão, com as sensíveis consequências que a insegurança provoca no
sistema penitenciário).
Não bastasse dobrar o
cumprimento da pena nos regime mais rigorosos para a progressão, o projeto
ainda estabelece que o cumprimento será de ½ da metade da pena para os casos de
reincidência em crime violento ou no tal crime
que tiver causado grave lesão à sociedade.
Pródigo em tantos outros
artigos em estabelecer desnecessárias balizas para a fixação da pena pelo juiz,
ou superar conflitos jurisprudenciais, aqui o pretenso legislador relega ao
critério do magistrado, tornando de livre interpretação a grave lesão à sociedade. Deixa de cumprir justamente o papel
destinado ao controle formalizado do direito penal, que é o de estabelecer
limites.
Não bastasse o aumento
expressivo na carcerização, a ser provocado pelo endurecimento do regime
progressivo, o projeto ressuscita o exame criminológico para a progressão (que
historicamente sempre foi um entrave para a progressão) e tornam mais rigorosos
os requisitos para a saída temporária. Sem deixar de anotar que o projeto só se
refere à monitoração eletrônica no
regime aberto (escancarando o ânimo que já se vislumbrava na lei específica,
que é o de levar um pouco de cadeia à liberdade e não o reverso).
Enfim, curva-se à crítica da
“opinião pública” no sentido de que as “penas não são cumpridas até o fim” –e
para evitar superposição de benefícios (como se estes realmente fossem nocivos),
abandona os tradicionais institutos da suspensão condicional da pena e do
livramento condicional.
Last,
but not least, o projeto retira a multa das penas
restritivas de direito, proibindo, em regra, a substituição da pena privativa
por ela, e a devolve à execução pelo Ministério Público, supostamente porque,
consoante a exposição de motivos, a execução pela Fazenda Pública como dívida
de valor não deu bom resultado.
Mas o propósito vai além,
porque a lei repristina também a conversão da multa em prisão. Não para todos,
bem entendido. Para o solvente, ela se transforma em perda de bens e valores;
para o insolvente em prestação de serviços que, descumprida, leva à prisão.
Ah, a seletividade...
2-) A legislação penal de
emergência
A ideia de que o Direito
Penal é a solução para a criminalidade (que não deixa de ser nada mais do que o
triunfo da esperança sobre a experiência) vem norteando o populismo legislativo
há décadas.
A criação de tipos penais
que buscam atingir a todo custo novas situações, ainda que a tutela penal seja
excessiva (e por isso mesmo jamais estiveram dentro dela) ou tornar mais ampla
sua abrangência, mais rigorosas suas penas ou seus regimes, tem claro
comprometimento com essa submissão à “opinião pública”, rendição ao populismo
midiático, que a edição de um Código Penal, estruturado e balanceado, deveria
impedir.
Ao trazer o populismo penal
para dentro do Código, os autores não apenas o legitimam, mas prolongam a sua
sobrevivência. Não dá mais para dizer: quando o novo Código vier, esses tipos
de ocasião serão revogados. Não, os tipos fazem parte agora de um Código de
ocasião.
O Código Penal acolhe os
tipos recentemente criados pelo Estatuto do Torcedor –que chega a punir com
prisão de um a dois anos quem invadir
local restrito aos competidores (art. 249), entre outros tipos criados com
a nítida preocupação de preparar a legislação para os grandes eventos. É sinal de que a realização da Copa do Mundo e das
Olímpiadas prometem nos deixar um legado pior ainda do que apenas um esperado
déficit.
A mesma preocupação de
exibir aos visitantes uma legislação “moderna e eficaz”, pode ter levado os
autores a tipificar o terrorismo (art. 239) de uma forma tão ampla e ao mesmo
tempo genérica. Sim, o projeto não esquece de agravar a pena quando a conduta é
praticada por arma de destruição em massa,
mas a abrangência do delito sugere que a preocupação dos autores não foi propriamente
o inimigo externo.
O terror pode, como uma
novel Lei de Segurança Nacional, atentar contra
o Estado democrático, ser causado por razões políticas ou ideológicas, e se restringir a condutas como a de manter alguém em cárcere privado ou invadir qualquer bem púbico ou privado. Será
isso mesmo o terrorismo?
Não é preciso ir longe para
inferir o potencial de criminalização de movimentos sociais que a nova legislação
contém.
O antídoto do projeto, a
esse respeito, é claramente insuficiente. A causa de exclusão esta lançada
assim: “Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de
pessoas movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os
objetivos e meios sejam compatíveis e adequados à sua finalidade”.
A contrario sensu, portanto,
caracteriza-se terrorismo se o juiz entender que os objetivos e meios do
movimento social são incompatíveis e inadequados à sua finalidade. Risco
grande, portanto.
E a punição ao terrorismo se
amplia também para os lados, punindo-se quem dá abrigo ou guarida (seja lá o que isso queira dizer) a pessoa de quem se saiba ou se tenha
fortes motivos para saber, que tenha praticado ou esteja por praticar crime
de terrorismo -criando uma inédita figura culposa de favorecimento, com a
bagatela de quatro a dez anos de reclusão (art. 241).
Por fim, nada menos conforme
a esse direito penal da emergência, do que a causa de aumento do art. 242, do
tipo de terrorismo, segundo a qual as penas serão aumentadas se as condutas
forem praticadas durante ou por ocasião
de grandes eventos esportivos e etc. Aqui se explica um pouco o porquê da
urgência de aprovação do projeto.
Bullying e stalking são
temas da moda e nada melhor do que aproveitar o prestígio e estender a eles a
tutela mágica do Direito Penal. Que Direito Penal será esse, devem se perguntar
os autores do projeto, se não pode ir a todos os campos, perscrutar todas as
asperezas, intervir em todos os conflitos, mesmo os mais íntimos?
A inépcia dos tipos consegue
ser ainda pior que a decisão de criminalizar.
A “perseguição obsessiva ou
insidiosa” (art. 147) destina-se a tutelar a liberdade, mas não se sabe
exatamente qual e por isso atira para todos os lados, protegendo a “integridade
psicológica”, a “capacidade de locomoção” e a “perturbação a esfera de
liberdade”, seja lá o que isso possa significar.
A intimidação vexatória, por
sua vez, é pródiga nos verbos, em que reúne condutas bem distintas: intimidar, constranger, ameaçar, assediar
sexualmente, ofender, castigar, agredir, segregar. Tira-se de barato que
repete o erro da criminalização do assédio sexual, em que constranger, tradicional verbo transitivo direto e indireto na
linguagem do direito penal, vem esvaziado de seu conteúdo.
A questão mais grave, porém,
é que todas essas condutas, a serem praticadas direta ou indiretamente (o que as torna ainda mais inimagináveis),
devem ocorrer com o agente valendo-se de pretensa
situação de superioridade.
E aqui o busílis é mais
sério, pois ou o agente se vale de uma situação de superioridade (e teremos a
criminalização do assédio moral, comum em especial nas relações de trabalho) ou
apenas projeta sua própria e inexistente situação de superioridade (e o crime
se aproxima, por exemplo, de alguma forma qualificada de injúria).
Mas nada representa melhor a
emergência do que a criação do crime de milícia –dirigido a combater a situação
das comunidades dominadas do Rio de
Janeiro. Incapaz de estipular por si só condutas abstratas, o projeto resolve
explicá-las ao público leigo, com a discutível técnica de exemplificação:
“Se a organização criminosa
se destina a exercer, mediante violência ou grave ameaça, domínio ilegítimo
sobre espaço territorial determinado, especialmente sobre os atos da comunidade
ou moradores, mediante a exigência de entrega de bem móvel ou imóvel, a
qualquer título, ou de valor monetário periódico pela prestação de serviço de
segurança privada, transporte alternativo, fornecimento de água, energia
elétrica, venda de gás liquefeito de petróleo, ou qualquer outro serviço ou
atividade não instituída ou autorizada pelo Poder Público, ou constrangendo a
liberdade do voto”.
O projeto faz crer, e nisso
reside seu defeito, que a situação só pode ser punida pela criação de um novo
tipo –este sim eficaz. Mas a ânsia de
explicar as possibilidades de extorsão fragiliza a própria compreensão do
“domínio ilegítimo de território”.
A dificuldade sempre residiu
em questões de prova e, mais precisamente, em enfrentar o poder, não na ausência
de tipo, eis que a cumulação de extorsões e formação de quadrilha sempre foi
juridicamente viável.
Mas a ideia da autoria incorporada
pela cláusula do domínio do fato, a
tipificação do enriquecimento ilícito
(plasmando a inversão do ônus da prova), a ampliação do início da execução para
atos preparatórios imediatamente anteriores, segundo o plano do autor, enfim, tudo
está a indicar que, como a jurisprudência que vem se formando nos momentos de
exceção, a exigência da prova tende a ser cada vez mais flexível.
O futuro parece não reservar
ao direito penal a mesma rigidez do sistema de provas, fato de que, certamente,
vamos nos arrepender no futuro, quando se espalhar para todos os tipos. Princípios,
dificilmente se regeneram, uma vez rompidos.
O direito penal de
emergência se junta ao direito penal do autor, ademais, quando o projeto
estabelece circunstância qualificada pela participação de ex-agente do sistema
de segurança pública (supra item 4). E, a despeito de ser um crime que se
dirige fundamentalmente à intimidação coletiva (pelo tal ‘domínio territorial’
ou sobre a comunidade) a pena da milícia pode ser ainda aumentada quando a violência ou grave ameaça recair
sobre pessoa incapaz, com deficiência ou idoso –como se fosse possível a
existência de uma comunidade sem incapazes, idosos ou deficientes.
Quando a causa de aumento é
obrigatória, representa na verdade, um disfarçado aumento de pena. E aí sim, o
legislador da emergência pode se dar por satisfeito, porque o novo tipo já
atingiu a pena máxima de trinta anos. Não há mais por onde crescer –quem poderá
lhe acusar de não ter resolvido definitivamente o problema das milícias?
E como convém a um país que
cresce no cenário internacional e passa a ser disputado como destino de imigrantes,
nada melhor do que prevenir e dobrar as penas de quem, por exemplo, oculta clandestino ou estrangeiro irregular.
Bush manda lembranças.
3-) O desbalanceamento
dos crimes
Uma das principais funções
da codificação, na área penal, é justamente o balanceamento dos crimes.
A edição de leis
extravagantes, em momentos distintos, com preocupações imediatistas em regra
impede esse equilíbrio da tutela dos bens jurídicos. A questão costuma se
resolver com os códigos, quando todos os tipos podem ser reequilibrados no
mesmo momento, condensando as diversidades de tratamento que as influências do
tempo marcaram. Desperdiçar essa oportunidade é quase como jogar o esforço de
produzir um Código fora.
As lesões corporais, por
exemplo, por mais graves que sejam (e o projeto cria lesões graves de
diferentes graus) são sempre tênues perto da dimensão de outros crimes, como os
patrimoniais ou provenientes da emergência penal. O furto qualificado equivale
à lesão dolosa que provoca enfermidade
grave e incurável; incapacidade permanente para o trabalho então exercido
ou debilidade permanente de membro,
sentido ou função.
O roubo de uma carteira
equivale à lesão que causa perda de
membro, inutilização de sentido, incapacidade para qualquer trabalho ou
deformidade permanente. Afinal, entre patrimônio e integridade física, o
direito penal nunca teve dúvidas qual tutelar melhor; continua não tendo.
O desnível do sequestro
(pena de um a quatro anos) que tutela só a liberdade com os crimes patrimoniais
se mantém –profundo, quando se compara com a tutela da mesma liberdade na
extorsão. Com a elevação das penas dos crimes contra a honra, torna-se muito
mais grave ofender alguém pela internet do que mantê-lo em cativeiro por até
quinze dias.
O furto de automóvel, se o
objetivo for levar o veículo a outro Estado, é mais grave do que o de uma
residência. O bem jurídico tutelado tem pouco a ver com o direito penal -é, na
verdade, o interesse das companhias seguradores –porque existe bem mais seguros
de automóvel do que residências.
Na mesma linha do interesse
de grandes corporações, reside a gravidade mantida aos crimes de violação de direito
autoral de videofonograma. O camelô, vendedor de CDs e DVDs piratas, que são
basicamente os únicos alcançados pela seletividade do sistema de repressão pela
proteção do direito autoral, continuam párias da suspensão condicional do
processo.
Na ânsia de aumentar penas,
o projeto amplia a punição das falsidades até a sanção de cinco a mais de dez
anos (se na atividade comercial, art. 262, § 2º) e revoga a falsidade e uso de
atestado e certidão, sob o pretexto de unificar a figura do documento,
aumentando sensivelmente a punição que o legislador anterior reconhecera de
menor gravidade.
A receptação culposa (art.
166, §3º) também está entre os crimes que teve sua pena ampliada, no caso para
se equiparar ao furto doloso –e a receptação dolosa torna-se mais grave do que
o próprio furto (que deve gerar no cotidiano forense situações inusitada de réu
que prefere confessar ter subtraído o bem, por ser menos grave do que adquirir
de quem o subtraiu). Afinal, receptação é crime grave que desassossega a
coletividade...
E na figura de lavagem de
capitais o projeto fez o que parecia inimaginável criando uma elasticidade na
pena ainda maior que a do tráfico de entorpecentes e que beira a
inconstitucionalidade, pois oscila nada mais do que entre o mínimo de 3 e o
máximo de 18 anos.
A preocupação ecológica cria
outros tantos monstros –além da já propalada omissão de socorro animal.
Nenhum deles parece mais
desproporcional do que crime contra a fauna do art. 388, com o acréscimo de seu
§5º (caça profissional) que, entre outras barbaridades, leva uma conduta como perseguir espécimes da fauna silvestre a atingir a pena de seis a doze anos
de reclusão -praticamente a mesma do homicídio, mas sem a necessidade de um
cadáver, nem mesmo do mundo animal.
Talvez se equivalha à
promoção ou mera participação de confronto de animais que possa levar à
mutilação ou morte (art. 395). Se ocorre a lesão grave do animal (nesta rinha
de galo criminalizada) a pena mínima é de três anos de reclusão (§1º); mas se a
mesma lesão for praticada intencionalmente no ser humano, com debilidade
permanente de membro, sentido ou função, ou causando enfermidade grave e
incurável (por exemplo, art. 129§2º), a pena mínima é de apenas dois.
Mas o desbalanceamento do
direito penal não se dá apenas pelo quantum,
mas também pelo conteúdo da proibição.
E nesse sentido, o projeto
corrompe seus próprios princípios, ao fazer tábula rasa da ofensividade que
trouxe como estandarte na Parte Geral, com a expansão das hipóteses do perigo
abstrato, a coqueluche do direito penal preventivo.
É o caso mais
especificamente do crime contra o patrimônio de “Dano aos dados informáticos”,
por equiparação. Na mesma pena de quem destrói, danifica, deteriora, etc,
incide quem produz, mantém, vende, obtém,
importa ou distribui... programas e
outros dados informáticos, destinados a destruir, inutilizar ou deteriorar
coisa alheia (art. 164, § único).
É a transposição para o
campo cibernético da antiga contravenção de posse de gazua ou chave falsa, de
discutível constitucionalidade. O legislador optou por dar um passo atrás,
tornando punível a simples conduta de obter ou manter um programa desse tipo,
inaugurando a criminalização do perigo abstrato ao patrimônio.
A punição do perigo abstrato
também se repete na sabotagem informática
(art. 210), em que à ação do hacker se equipara quem produz, mantém, vende, obtém, importa ou distribui códigos de acesso
–mais ou menos como punir o fabricante da arma pelo crime posterior com ela
empregado, ou o porte de arma com a mesma pena do crime de dano com realizado
com o instrumento.
Antecipação de tutela,
aliás, que o projeto herda acriticamente do ECA, em relação à posse, aquisição
e armazenamento de fotografia ou vídeo com sexo envolvendo crianças e
adolescentes (art. 496)
E a ânsia de antecipação do
punir acaba por provocar inexplicáveis inversões, como o fato de que guardar moeda falsa seja punida com pena
de 3 a 8 anos (art. 259, §2º), ao passo que a aquisição de produtos de pequeno
valor com ela só é punido com pena de 1 a 4 anos de prisão.
No estelionato massivo, outra badalada inovação, o projeto contempla a
ideia de causa de perigo (destinada a
produzir efeitos em um número expressivo de vítimas) para aumentar a pena em um crime de dano.
E na tumultuada legislação
de trânsito, a que mais sofre alterações de emergência, na direção sob influência de álcool, o projeto
optou pela solução de manter convivendo um tipo de perigo abstrato (sendo manifesta a incapacidade para fazê-lo
com segurança) e outro de perigo concreto (expondo a dano potencial a segurança viária), ambos com a mesma
pena e ainda sem prejuízo da
responsabilidade por qualquer outro crime cometido.
A redação sugere a
possibilidade de uma cumulação inédita, na mesma ação, de crime de dano, perigo
concreto e perigo abstrato –o que certamente será repelido pela jurisprudência
(quem sabe mais adiante acusada de amolecer
com os criminosos de trânsito).
4-) O direito penal do
autor
Da mesma forma que a
proliferação dos crimes de perigo abstrato esvazia a promessa da ofensividade,
os resquícios de direito penal do autor corrompem a vinculação da pena à
culpabilidade, merchandising do projeto estampado em seu artigo primeiro.
Se o agente é punido mais
pelo que é, do que pelo fez, a noção de culpabilidade perde força –trata-se de
carta marcada antes mesmo de ser sorteada.
Os resquícios desse
despropósito se encontram ocultos, disfarçados, mas ainda presentes no projeto.
A fúria punitiva que
determinou a criação da associação qualificada pela milícia produz um exemplo virtuoso –a causa de aumento, que
praticamente faz dobrar a pena, se a associação é integrada por agentes ou ex-agentes do sistema de segurança pública
ou das forças armadas, ou por agentes políticos (art. 256, §3º).
É certo que a realidade
demonstra há tempos que o crime organizado se escora no próprio Estado (daí a
dificuldade de punição, mais do que a falta de um tipo), mas querer combatê-la
com um apenamento de emergência chega às raias do absurdo –a qualificação por
ser o autor um ex-agente do sistema de
segurança (ou seja, nem sequer pelo que é, mas pelo que foi) não se coaduna
minimamente com o conceito de direito penal do fato.
E eis que o direito penal do
autor também ressurge no ponto alto do projeto, a descriminalização do porte
para uso pessoal de entorpecente. Entre os critérios para determinar se a droga
se destinava a consumo pessoal, o juiz
atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, à conduta, ao
local e às condições em que se desenvolveu a ação, bem como às
circunstâncias sociais e pessoais do agente.
Ao introduzir no tipo penal
as circunstâncias sociais e pessoais do
agente como elemento distintivo do porte para uso pessoal ou comércio,
recria-se a ideia de que o agente pode ser punido pelo que é (ou foi) e não
pelo que fez.
Embora os indícios apontem
no sentido de que os autores até tenham agido de boa-fé, não afastam, ou ao
revés, estimulam, que determinado agente seja ao final punido pelo tráfico, havendo
alguma espécie de dúvida em razão, por exemplo, de uma reincidência. A partir
do momento em que uma reincidência pode ajudar a definir o crime praticado em
outro delito, o direito penal se afasta do fato –em um caminho sem volta.
E, a propósito, o Código
também perde a oportunidade de corrigir uma outra invasão do direito penal do
autor, com a importação quase sem alterações, da recente lei de entorpecentes
(estatísticas do Departamento Penitenciário estipulam que a proporção de presos
por tráfico de entorpecentes simplesmente dobrou depois de sua edição).
A hipótese do tráfico
privilegiado, que permite a redução de 1/6 a 1/3, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique
às atividades criminosas nem integre associação ou organização criminosa de
qualquer tipo.
Temperar a punição, nestas situações,
é um dos poucos avanços da Lei de Entorpecentes. Mas, uma vez que o dedicar-se a atividades criminosas é
quase letra morta (criando uma circunstância não apreciável para além da
reincidência ou primariedade), e a integração a organizações criminosas em
regra de difícil prova, a redução tem mesmo sido expressivamente vedada nos
casos de reincidência (ou de maus antecedentes).
E nestes casos, a aplicação
do direito penal do autor exsurge com evidência. A diferença entre uma pena de
5 anos a quem não é primário (ou não tem bons antecedentes) e a de 1 ano e 8
meses a quem é, é tão profunda que se pode dizer, sem chance de erro, que dois
terços da pena são decorrentes não do tráfico que o agente praticou -mas do
reincidente que ele é.
E a reincidência aqui (ou os
maus antecedentes) nem são específicos: uma condenação anterior por porte para
uso pessoal, por exemplo, tem sido aceita na jurisprudência para impedir a
redução (e triplicar o valor da pena se assim não fosse). A ofensa à
proporcionalidade é manifesta.
5-) Os pecados da redação
No direito penal, linguagem
não é apenas instrumento –é também garantia.
A redação do tipo concentra
a limitação do poder de punir. O princípio da legalidade é também esvaziado
quando a linguagem é vaga ou demasiadamente ampla que deixa de cumprir a função
de controle. Neste sentido, o projeto amplia a tendência da segunda metade do
século XX na expansão verbal dos tipos, retratando a ânsia de cercar todos os
comportamentos possivelmente nocivos, rumo ao direito penal máximo (em que
todas as condutas possam ser confortavelmente acolhidas).
Mas os pecados de redação,
no caso do projeto, vão além das digressões ideológicas. Circunstâncias legais
que invadem competências judiciais, causas de aumento que desrespeitam a lógica
do tipo, equiparações dissonantes. De tudo um pouco, se encontra nas redações
que não apenas evitaram corrigir erros de legisladores antigos, se solidarizam
praticando outros.
Eles até podiam se escusar
na pressa, mas tendo sido esta deliberada, feita inimiga não só da perfeição,
como do debate, aos autores não lhe será permitida arguir a própria torpeza
como atenuante.
Alguns exemplos que uma
observação rápida nos permite identificar.
O art. 71, § único,
determina que as causas de aumento ou de
diminuição terão os limites cominados em lei, não podendo ser inferiores a um
sexto, salvo disposição expressa em contrário. Mas se elas terão os limites
cominados em lei, a quem é o comando de que não poderão ser inferiores a um
sexto? Nem ao próprio legislador que excetua as disposições expressas em
contrário (uma delas, aliás, é a causa de diminuição genérica, com a mínima
redução de 1/12, a que já fizemos referência).
A multa não depende mais da
previsão expressa (decisão no mínimo imprudente) e passa a ser aplicada em todos os crimes que tenham produzido ou possam produzir
prejuízo materiais à vítima.
A função da cominação das
penas é do legislador, no caso, indevidamente transferida ao juiz (e, portanto,
também à instrução do processo) pela cláusula do prejuízo. Mais, a regra do
prejuízo potencial é mais ainda indeterminada.
E, por fim, uma questão em
aberto: porque condicionar a previsão de multa ao prejuízo da vítima, se a multa será paga ao Estado (Fundo
Penitenciário)? Fosse optar pela indeterminação da cominação, seria melhor que
estabelecesse multa nos casos de obtenção de vantagem patrimonial pelo agente
–respeitando a lógica da cominação anterior.
O projeto cria a distinção,
em vários dispositivos, de crime que
afete a vida. Supõe-se que quer tratar de crimes com resultado morte
(incluindo-se os que não são contra a
vida). Teria sido mais razoável que eliminasse uma desnecessária causa de
divergências.
A inclusão da violência
doméstica como circunstância qualificadora do homicídio é, no mínimo,
temerária, pois pode contemplar situações das mais divergentes. Não se trata de
forma de execução ou motivação, mas apenas um contexto.
A chance de propagar
injustiças (tratamento isonômico de situações díspares) é gigantesca. Tanto que
os próprios autores temperaram a redação com o acréscimo da locução em situação de especial reprovabilidade ou
perversidade do agente.
A especial reprovabilidade, que é também vaga, se refere mais à
aplicação da pena do que propriamente à figura típica, aumentando a
indeterminação que esvazia a proteção do princípio da legalidade. Se a conduta
é mais ou menos reprovável é questão
do campo da censura, ou seja, da fixação da pena pelo juiz, não do
estabelecimento da distinção entre a figura simples e a qualificada (com todas
as consequências que um enquadramento errôneo produz). E a perversidade já
estaria contemplada na qualificadora do meio
cruel.
Parece que o legislador
compreendeu que a violência doméstica cria situações distintas que não se pode
equiparar. Devia ter evitado fazê-lo para os efeitos de criar mais uma dúvida.
A criação da culpa
gravíssima (art. 121, §5º) tem um destino específico: evitar a propagação da
punição dos crimes de trânsito por dolo eventual. Nesse sentido é justa. Mas é
desnecessária a explicitação de exemplos no tipo penal, técnica de redação das
mais discutíveis. É certo que as leis devem ser redigidas em linguagem
compreensível, mas transformar o tipo penal em explicação para o leigo não é a melhor forma de preservar a
formalização do controle e o sentido da tipicidade.
O perdão judicial poderia
ser estendido a outras hipóteses ou mesmo servir de cláusula genérica para que
o juiz, dosando as consequências que o fato já provocou na vida do agente,
pudesse considerar a punição desnecessária. Não foi. O máximo que o projeto
chegou foi inserir um causa de diminuição, quando a exposição pelo crime debilitou
a privacidade do agente.
A simples alteração de
redação dos casos de perdão nos crimes contra a vida só veio a trazer maior
indeterminação. Não parece razoável que o parentesco possa servir de causa
suficiente para a isenção da pena como indica o ou que a redação do parágrafo 8º faz presumir. É preciso, de
toda a forma, um vínculo subjetivo de afeição ou sofrimento.
O projeto faz bem em
distinguir atos de violação de outros atos libidinosos; mas o novo molestamento
sexual não é de fácil compreensão, especialmente em sua modalidade
privilegiada. O tipo básico criminaliza quem, mediante violência ou grave
ameaça ou se aproveitando de situação que dificulte a defesa da vítima,
constrange outrem à prática de ato libidinoso.
Uma vez que aquele que se
aproveita da situação de vulnerabilidade (o bolinar no ônibus lotado, exemplo midiático
da exposição de motivos) também está contido no caput, qual seria exatamente o molestamento sem violência ou grave ameaça da figura privilegiada?
O equívoco da redação do
assédio sexual não se deve aos autores do projeto. Mas é certo que não a
corrigiram. Constranger para o direito penal tem o sentido de forçar (a fazer o
que não se quer, no constrangimento ilegal; à prática de ato sexual, no estupro; a fazer ou tolerar que se
faça, na extorsão etc). Falta um verbo a que seja a vítima constrangida enfim –até
porque constranger ao ato sexual seria estupro.
E o erro da lei de
entorpecentes também se mantém íntegro, fixando entre os critérios de aplicação
da pena a natureza do entorpecente.
Se o tipo penal só se aplica
a substâncias entorpecentes, porque distingui-las por sua natureza?
Isso abre caminho para
decisões que apenam de forma mais gravosa o tráfico de cocaína sobre o de
maconha e o de crack sobre o de
cocaína em pó, por exemplo, como se a fazer, por via jurisdicional, e sem
qualquer amparo científico, um ranking de
entorpecentes, impreciso e inseguro, aberto, inclusive, a discriminações
sociais.
O crime de denunciação falsa
é paradigmático. A conduta proibida é dar causa à instauração de investigação
ou procedimento contra quem sabe inocente; a causa de aumento amplia a punição se o agente se serve de anonimato. A
questão aqui é o absurdo de dar causa à instauração de inquérito policial ou
outra investigação por meio de denúncia
anônima –o Estado pune o agente por sua própria leviandade.
Mas a redação mais grotesca
é a da exclusão do crime de emissão ou distribuição de título ou valor
mobiliário irregular (art. 352, §2º),
que fala por si só: não incorre no crime
descrito neste artigo o autor que não dispunha de meios razoavelmente
disponíveis para ter conhecimento da imprecisão ou falsidade...
6-) O esvaziamento do
processo
O projeto não se satisfaz em
engrandecer o direito penal, reverenciado como instrumento eficaz de controle
de criminalidade e regulação social. Investe também no esvaziamento do
processo.
A pretensão de regular
também as normas processuais se insinua ao longo do texto, quando os autores
pretendem estabelecer a prova cabível (no delito de direção sob influência de
álcool, art. 202, §s1º e 2º), o valor da prova (delação somente será admitida quando acompanhada de outros elementos
probatórios convincentes, art. 106, III)
ou quando se assume na função de definir o recebimento de denúncia (assim considerado o momento posterior à
resposta preliminar do acusado, art. 348, §4º).
Mas é a criação do instituto
da barganha (sintomaticamente
inserido no mesmo título que a colaboração
com a justiça¸ art. 105) em que a pretensão de esvaziar o processo se
mostra mais efetiva e, infelizmente, eficaz.
O projeto faculta às partes,
no exercício da autonomia das suas
vontades (pressupondo-se, lógico, o equilíbro entre o Estado e o indivíduo
acusado de um crime e muitas vezes preso), a celebração de acordo para aplicação imediata das penas, antes
da audiência de instrução e julgamento (art. 105).
O projeto exige a confissão
do acusado, antes da audiência de instrução (ainda que o interrogatório pela
lei processual só tenha lugar após a oitiva das testemunhas) e em troca entrega
a ele a obrigatoriedade de fixação da pena no mínimo legal, a proibição do
regime fechado e, se houver acordo com o acusador, também uma causa de
diminuição.
O projeto tonifica o poder
do Ministério Público (pois sua manifestação, em regra vinculada, é tratada
como autonomia da vontade) e estimula
a confissão com a promessa de uma pena mínima (e se houver vontade, uma
redução). Ignora as condições em que essa autonomia
da vontade possa estar presente, nas circunstâncias de uma acusação e
admite, enfim, que alguém possa cumprir pena de prisão sem processo.
O desmantelamento do
processo tem o álibi da vontade do réu, transformando-o de irrenunciável a
disponível, e confere plena eficácia à confissão (o que décadas de refinamento
da doutrina buscaram evitar).
A ideia do processo como
garantia, que informa o conteúdo de um processo penal democrático, se esvai e
tal como o direito penal, é substituído pela utilitária noção da eficácia.
Civiliza, por assim dizer, o processo penal, reduzindo-o a um acordo de
vontades, no qual se sobreleva, em especial, a vontade de não haver processo.
O processo penal como
garantia é um bastião essencial para conter o poder punitivo –função última do
aplicador da pena. Esvaziá-lo é mais um condimento da expansão do direito penal
e, por conseguinte, da redução do controle.
Apostar na eficácia diante
da garantia é talvez o mais grave pecado do projeto –uma opção que não tem
volta.
7-) O projeto pelo
projeto
O ambicioso projeto de
Código Penal é, sobretudo, uma atualização.
Não há profunda alteração de
paradigmas. O projeto não abandona a pena de prisão, como sugere sua exposição
de motivos –antes, a vulgariza.
Não balanceia a incorporação
dos tipos da legislação extravagante como insinua –mas se contamina por ela.
Não introduz um veio teórico
definido, embora vá superpondo registros mais modernos (como a imputação
objetiva) às teorias tradicionais.
E mesmo quando elenca sua
exposição de princípios, a esvazia paulatinamente na individualização de tipos
e penas.
Como atualização, insere
novidades que são seus maiores pecados e reproduz quase integralmente a
legislação mais recente, cujos princípios se chocavam com a própria codificação
–e por isso se acomodam tão desconfortavelmente a ela.
É dirigista nas penas,
tratando circunstâncias judiciais como agravantes ou causas de aumento e
formatando regras para aquelas que deixa a cargo do juiz –mas ao mesmo tempo
abre enormes espaços à indeterminação naquilo que é menos indeterminado, como o
tipo, a cominação e a progressão.
Enfim, sob o ponto de vista
lógico, é o samba do jurista doido. Sob o ponto de vista ideológico, cumpre a
tradição do inusitado, ao deixar a esquerda perplexa e a direita enraivecida.
No campo moral, há avanços
nítidos, com a revogação da hipócrita casa de prostituição (que a
jurisprudência começa a fazer por conta própria), a ampliação das hipóteses do
aborto legal, a descriminalização do porte de entorpecentes e a instituição dos
novos tipos de eutanásia e ortotanásia. Mas o início do processo legislativo parece
ter deixado claro que estes são os dispositivos menos propensos a ganhar força,
correndo o risco de terem servido como meros fogos de artifício.
Em certa medida, o processo
de construção do projeto antecipou-se às práticas do próprio parlamento que buscou
replicar: votações por maioria, concessões recíprocas, temas interditados. Ao
final, um término apressado que não condiz com a tarefa de codificar setenta
anos de vigência do anterior.
A urgência na votação supõe
que a edição do Código é, em si mesma, mais importante do que seu conteúdo –talvez
pela propalada necessidade de adequar a legislação a um patamar globalizado, como conviria a um país em
franca ascensão e pleno de visibilidade internacional.
Mas será que neste campo tão
intimamente ligado aos direitos humanos e aos limites do poder vale a pena
avançar neste frenesi, apenas para carimbar o país com uma tal modernidade que
talvez, na essência, não seja mesmo a nossa?
Vale a pena entregar
garantias, em nome de uma propalada eficácia?