domingo, 2 de junho de 2013

....ofício da AJD a deputados estaduais, sobre execuções criminais....






Ofício encaminhado pela Associação Juízes para a Democracia aos deputados estaduais, sobre a criação de departamentos de execução criminal

 

 

 

Exmo (a) Sr(a) Deputado(a) da Assembléia Legislativa do Estado de  São Paulo.

 

 

 

PLC 47/2012

        09/2013

 

 

 

 

               A ASSOCIAÇÃO JUÍZES PARA A DEMOCRACIA, entidade não governamental, sem fins corporativos, que tem dentre seus objetivos estatutários o respeito absoluto e incondicional aos valores próprios do Estado Democrático de Direito e a defesa dos direitos humanos e da independência judicial, representada pelo presidente de seu Conselho Executivo, vem à presença de Vossa Excelência, respeitosamente, para apresentar alguns dados atinentes aos projetos em epígrafe.

 

               Hoje o Tribunal de Justiça de São Paulo conta com:

 

               a) Vinte e duas ( 22) varas privativas de execuções criminais;

 

                          b) Possui diversas varas  cumulativas com execução criminal , com volume significativo de processos a justificar a   transformação  em vara privativa de execução  criminal;

 

             c) Varas pelas quais tramitam processos de execução, de condenados soltos, em todas as comarcas.

 

                Os inquéritos policiais  são processados em todas as 316 comarcas.  Logo, há um grande número de juízes que têm sobre sua jurisdição  esta primeira fase do processo criminal, pois em várias comarcas há mais de uma vara criminal  e vara do júri. Em todas elas  tramitam inquéritos policiais .

               

                          O PLC 9/2013 estabelece que poderão ser criados,  no máximo, a critério exclusivo do TJSP,  10 departamentos  de execução criminal e 10 departamentos de inquéritos policiais.

 

                         Logo, com os dados acima indicados, somente podemos concluir que  o projeto não é  descentralizador, ao contrário.

 

                         Hoje temos  um número maior de varas privativas e cumulativas, do que o número máximo de departamentos  que o TJSP  poderia criar, anote-se- o máximo, pois pelos termos do projeto, ficaria a critério do TJSP instalar ou não os departamentos e por resolução alterar a qualquer momento a composição destes departamentos.

 

                          Consequência imediata é que juizes ficarão cada vez mais distante do jurisdicionado e seus familiares, assim como os advogados, defensores e promotores de justiça.

 

                         O acesso à justiça, direito fundamental estará cada vez mais vulnerado.

 

                          Anote-se que isto acarretará um custo  elevado, que sabemos não pode ser arcado pelos familiares, que pretendem informar-se sobre os processos. Quem arcará com estes gastos?

 

                           Os inquéritos terão que caminhar de um lado para outro, percorrendo distâncias  consideráveis, o que também implicará  em maiores  despesas. É de conhecimento de todos que  há uma enorme defasagem nos  cargos ocupados pela policia civil ( fala-se em mais de cinco mil cargos). Quem transportará os inquéritos para os departamentos?  Qual o custo  material deste transporte? Especialmente, e o custo humano? Os policiais   deixarão de investigar para percorrer percursos para entregar os inquéritos?

 

                            Encaminhamos  em anexo as distâncias das cidades para a sede dos eventuais departamentos, isto  levando em consideração a possibilidade de instalação máxima de 10 departamentos ( pode variar de 1 a 10), o que demonstra que a centralização que se pretende implementar contraria a tendência e as recomendações da melhor administração de justiça.

 

                                   A relação das distâncias poderá  inclusive fornecer  um pequeno panorama das distâncias que  os inquéritos terão que transitar e que os familiares de presos  terão que percorrer para ter acesso à justiça.

 

                           O PLC 47/12 prevê a possibilidade de criação de qualquer departamento, de qualquer matéria , a critério exclusivo do TJSP, retirando o poder indelegável do Poder Legislativo.

 

                             Há vários outros dados relevantes que podem ser úteis para uma reflexão mais profunda sobre os  inúmeros aspectos  dos projetos que  podem servir para  que os melhores desígnios da Justiça possam ser alcançados.  A apresentação de alguns aspectos, neste ofício tem o intuito de contribuir para o debate acerca dos projetos, sendo que vários outros podem ser obtidos diretamente do TJSP, como foi sugerido e apresentado  em ofício na  reunião  realizada com o Colégio de Líderes, que esperamos seja atendido  e informamos que os dados  referente às varas de execução criminal estão sendo providenciados para apresentação à Vossa Excia.

 

                        Sem mais, colocamo-nos à disposição para aprofundar a reflexão e o debate.

 

 

São Paulo, 13 de maio de 2013.

 

 

                                  José Henrique Rodrigues Torres

                                 Presidente do Conselho Executivo

                              Associação Juízes para a Democracia



sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Projeto do Código Penal: o jogo dos sete erros


 
 

 

Prisionalização que não combate a seletividade. Recrudescimento da execução. Eficácia que esvazia até o processo.



 

 

Eles se propuseram a fazer um código sem ideologias. Pragmático, mais que dogmático. Atual, mais do que isso, moderno.  Naufragaram – o projeto do Código Penal faz água por todos os lados.

 

Não por ser simplesmente reacionário -está salpicado de boas intenções, aqui e acolá, reduzindo certas penas e expungindo parte da punição moral do direito.

 

Mas não deixa de ser um adepto incondicional da eficácia.

 

Acredita em demasia no direito penal e em seu poder simbólico -por isso mesmo não se constrange em mantê-lo grande, nem se incomoda com o intenso recrudescimento da execução penal e as tétricas consequências que pode provocar com isso.

 

Como toda obra com decisiva influência do marketing, não entrega aquilo que promete.

 

Deseduca, ao perseverar na ideia de um direito penal majestoso, que responda a todos os problemas e seja a solução para a criminalidade.

 

Flerta com o autoritarismo, ao trazer para o campo penal a solução dos mais variados conflitos, e é mais inepto sintomaticamente onde inova.

 

A incorporação de teorias soa às vezes, incômoda, mas a redação de novos tipos demonstra ainda mais imprecisão.

 

O projeto abre mão de conceitos para abraçar o mundo em busca da eficácia, e em certas situações se vê a meio caminho do grotesco.

 

Que se pode dizer de um código gigantesco, que ainda encontra condutas para criminalizar, que se torna mais extravagante que a legislação que incorpora e que é dedicado, na apresentação de seu relator, a duas vítimas infantes de crimes de grande repercussão?

 

Um trabalho que joga para a plateia -e como se espera de todo esse apego demagógico, resulta em um estrondoso fracasso de crítica.

 

O projeto é um espelho de sua produção. Seus juristas mais falaram que ouviram; deram mais entrevistas que debates. Buscaram reproduzir nas suas votações internas os consensos e conflitos de acadêmicos que não escutaram.

 

Ao final, o texto é apressado, confuso e, muitas vezes, contraditório.

 

Pretensioso, ainda esvazia o processo penal, estilhaçando sua noção de garantia, através do utilitário instituto da barganha.

 

Tem avanços, em especial ao reduzir a tutela da propriedade. Mas é tímido em alguns acertos e tíbio quando se obriga, em razão destes, a ceder a cada momento ao rigorismo, especialmente na execução penal. Dá, enfim, algumas no cravo, outras tantas na ferradura.

 

Ao final, o trabalho não se compromete nem mesmo com suas próprias bandeiras. Sua criminalização não atende aos princípios que estipula. Suas concessões a um direito penal máximo comprimem acertos. Ademais da falta de ideologia, portanto, o pragmatismo também se sai fortemente ameaçado.

 

Sem a pretensão de um trabalho exaustivo (pois exaustivo demais é o próprio projeto), compartilho algumas das principais preocupações após uma primeira impressão.

 

Somadas as críticas já veiculadas de comentaristas mais gabaritados, só se pode concluir que o atual estágio de tramitação está anos-luz na frente de onde o texto merecia estar a esta altura: proposta para começar a discussão, jamais um projeto na iminência de se transformar em lei.

 

Não cabe aqui acolher a escusa da imprudência.

 

Se o Código Penal é, como diz o presidente de sua comissão, a lei mais importante abaixo da Constituição (e por aí já se vê o prestígio exacerbado que a comissão deu a seu mister e ao próprio direito penal) ela jamais poderia ter caminhado dessa forma tão sobranceira e auto-referente.

 

 

1-) Prisionalização e seletividade

 

O principal defeito do sistema penal brasileiro não é a impunidade –mas a seletividade. Faltam vagas para a extensa população carcerária, que cresce a cada dia –mas não há pluralidade de classes nas celas.

Elaborar um Código Penal significa, em primeiro lugar, ter em mente este problema, bem ainda as consequências da força do instrumento que é. Como a experiência tem nos mostrado, enrijecer o sistema penal em busca de nova clientela dificilmente resolve o problema da seletividade, pois os princípios do rigor, mais hora, menos hora, acabam sendo replicados também aos mais vulneráveis que contam com o outro lado da seletividade –a maior fiscalização e a menor possibilidade de defesa.

Só a diminuição do direito penal permite reduzir o impacto gravoso do Estado sobre a população mais carente. Mas em alguns momentos, o candidato a legislador parece agir com alguma espécie de privação de sentidos. Ou não consegue compreender o caráter nocivo do direito penal ou, premido pela expectativa social que quer afagar, não consegue se comportar de acordo com essa compreensão.

Assim, em que pese visíveis esforços em um sentido de retração da prisionalização (reconheça-se, por exemplo, em certas normas da parte geral e na redução de pena de tipos como furto e roubo), são estes mais tímidos do que poderiam e em regra acompanhados de concessões que, se não os esvaziam de todo, buscam compensações em outros cantos, como a dizer: se eu baixo aqui, tenho de aumentar ali. Mais um reflexo da propalada falta de ideologia.

É o caso, por exemplo, da tentativa.

Estranhamente inserido na Parte Geral, dispositivo sobre tentativa de crimes patrimoniais refuta interpretação civilista que vem ganhando terreno na jurisprudência a partir de decisões dos tribunais superiores: nos crimes contra o patrimônio, a inversão da posse do bem não caracteriza por si só, a consumação do delito (art. 24, § único).

Mas a exposição de motivos se apressou em dizer, ao mesmo tempo, que não se preconizou a adoção do ponto de vista rival, segundo o qual apenas da posse ‘mansa e pacífica’ adviria o aperfeiçoamento do tipo penal, fulminando, por uma espécie de interpretação quase-autêntica a leitura mais tradicional do instituto. Não se sabe bem ao certo aonde o legislador procurou chegar, então.

O Código reconhece, enfim, o princípio da insignificância, trazendo à lei critérios que vem sendo utilizados pela jurisprudência do STF. Pela imensidão de insignificâncias que a redação exige (mínima ofensividade da conduta, reduzidíssimo grau de reprovabilidade, inexpressividade da lesão) muito provavelmente vai levar o intérprete que naturalmente o exclui por falta de previsão a exclui-lo por ausência de seus requisitos –e ainda pode constranger os que já o aplicam. Não à toa, o infeliz exemplo trazido pela Exposição de Motivos foi justamente a do furto de alfinete...

Paradoxalmente, no âmbito dos crimes tributários, o princípio da insignificância é mais bem tratado: não há crime se o valor correspondente à lesão for inferior àquele usado pela Fazenda Pública para a execução fiscal (art. 348, §8º).

Aqui, não se preocupa mais com a mínima ofensividade da conduta ou com o reduzidíssimo grau de reprovabilidade. Basta o valor. Ah, a seletividade...

O projeto define, na esteira da jurisprudência do STF, os limites dos antecedentes criminais, para afastar a inconstitucional aplicação de processos em andamento ou condenações recorríveis, e ainda estabelece a caducidade dos maus antecedentes, nos mesmos padrões da reincidência.

Mas de outra parte, transfere os antecedentes das circunstâncias judiciais para o status de circunstância agravante (de aplicação obrigatória).

Ao mesmo tempo em que permite que o juiz possa desconsiderar a reincidência quando o condenado já tiver cumprido a pena pelo crime anterior e as atuais condições pessoais sejam favoráveis à ressocialização (art. 79 §único), impõe que essa mesma condenação seja utilizada como circunstância agravante (art. 77, II).

O projeto permite que a circunstância atenuante possa levar à fixação da pena-base abaixo do mínimo (quando houver aplicação de uma causa de aumento, art. 84, §3º) –todavia, esvazia a própria circunstância atenuante ao extrair a menoridade relativa de suas causas, além de levar a idade do idoso atenuado a setenta e cinco (em franca contradição, aliás, com a redução dos prazos prescricionais, em que permanecem íntegras a influência da menoridade e da idade de setenta anos, art. 115).

Permite, enfim, o Código que o juiz excepcionalmente diminua a pena em virtude das circunstâncias do fato e consequências para o réu, mas talvez em face de um constrangimento ao fazê-lo, os autores inauguram uma fração abaixo de seu mínimo tradicional: 1/12!

Aliam-se a esses dispositivos benéficos ma non troppo¸ a redução da pena de furto e roubo –também de uma forma constrangida.

O furto simples passa a ter pena mínima de seis meses. Diferentemente de uma plêiade de tipos em que os padrões se repetem no Código entre 6 meses e dois anos, neste caso, a timidez levou os autores a fixarem três anos como máxima, com o propósito inescondível de impedir que o delito possa ser inserido entre os de menor potencialidade ofensiva –onde de fato deveria estar.

Para não perder a mão apenas na entrega, o projeto incorpora à extensão da coisa móvel, o sinal de televisão a cabo ou de internet e item assemelhado que tenha valor econômico –resolvendo, de forma mais gravosa antigo dissenso jurisprudencial.

E, pior, abre mão do próprio sentido de crime contra o patrimônio, ao inserir uma inusitada equiparação à coisa móvel do documento de identificação pessoal. O documento jamais deixou de ser coisa móvel –sua subtração era atípica apenas pela ausência de valor patrimonial relevante, o que o dispositivo penal ontologicamente não altera.

As figuras do furto aumentado ainda se inserem entre aquelas cuja pena não ultrapassa um ano, o que proporciona consequências positivas (ampliando o campo de incidência da suspensão processual), mas o projeto continua se rendendo a maior gravidade do furto de veículo automotor com a finalidade de transportá-lo para outro Estado (resquício vivo da legislação de emergência que procura combater a nova criminalidade com aumento de pena) –desbalanceando a tutela, por exemplo, em relação ao furto à residência.

Reduz também a pena do roubo ao patamar de três a seis anos e corretamente insere o sequestro relâmpago na mesma categoria (eliminando a desproporção criada por outra lei de emergência penal).

Cria o roubo privilegiado (sem violência real, quando a coisa subtraída for de pequeno valor e o meio empregado inidôneo para ofender a integridade da vítima), em que inexiste violência e a ameaça se faz sem emprego efetivo de arma (por exemplo nas hipóteses de simulação e simulacro) –mas abre a porta para sua não aplicação ao exigir que também não seja causado à vítima um impreciso  dano psicológico relevante.

A contradição é manifesta entre o critério objetivo da lesividade da ameaça (meio empregado for inidôneo para ofender a integridade da vítima) e a concessão ao critério subjetivo –que no cotidiano forense pode reduzir enormemente a incidência.

Sua figura qualificada mantém-se no patamar antigo do roubo simples –mas a timidez mais uma vez evita excluir-se da hipótese aumentada o concurso de duas ou mais pessoas que, equiparado desproporcionalmente ao emprego de arma, é causador frequente de injustiças.

Avanço considerável, e com enorme atraso, é tratar crimes patrimoniais sem violência como sujeitos à representação. O projeto agrega a reparação do dano como forma de extinção da punibilidade –mas sem olvidar o senão de exigir que a vítima antes aceite.

No entanto, todos esses avanços contidos, essa liberalidade constrangida, essa entrega receosa, podem resultar em nada diante das regras que tornam, ao mesmo tempo, mais rigoroso o sistema progressivo de cumprimento das penas –provocando maior encarceramento.

É certo que a lei passa a permitir a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos em caso de violência ou grave ameaça, quando a pena se limita a dois anos (art. 61, II, b), mas, em contrapartida, veda o ingresso no regime aberto para crimes com violência ou grave ameaça de 2 até 4 anos (art. 49, III, em claro retrocesso com o panorama atual).

E ainda cria outros padrões para a progressão de regime (art. 47): um terço da pena para o condenado reincidente, se o crime for cometido com violência ou grave ameaça ou a genérica hipótese de crime que causa grave lesão à sociedade (que consegue a proeza de tornar indefinido o prazo para a progressão, com as sensíveis consequências que a insegurança provoca no sistema penitenciário).

Não bastasse dobrar o cumprimento da pena nos regime mais rigorosos para a progressão, o projeto ainda estabelece que o cumprimento será de ½ da metade da pena para os casos de reincidência em crime violento ou no tal crime que tiver causado grave lesão à sociedade.

Pródigo em tantos outros artigos em estabelecer desnecessárias balizas para a fixação da pena pelo juiz, ou superar conflitos jurisprudenciais, aqui o pretenso legislador relega ao critério do magistrado, tornando de livre interpretação a grave lesão à sociedade. Deixa de cumprir justamente o papel destinado ao controle formalizado do direito penal, que é o de estabelecer limites.

Não bastasse o aumento expressivo na carcerização, a ser provocado pelo endurecimento do regime progressivo, o projeto ressuscita o exame criminológico para a progressão (que historicamente sempre foi um entrave para a progressão) e tornam mais rigorosos os requisitos para a saída temporária. Sem deixar de anotar que o projeto só se refere à monitoração eletrônica no regime aberto (escancarando o ânimo que já se vislumbrava na lei específica, que é o de levar um pouco de cadeia à liberdade e não o reverso).

Enfim, curva-se à crítica da “opinião pública” no sentido de que as “penas não são cumpridas até o fim” –e para evitar superposição de benefícios (como se estes realmente fossem nocivos), abandona os tradicionais institutos da suspensão condicional da pena e do livramento condicional.

Last, but not least, o projeto retira a multa das penas restritivas de direito, proibindo, em regra, a substituição da pena privativa por ela, e a devolve à execução pelo Ministério Público, supostamente porque, consoante a exposição de motivos, a execução pela Fazenda Pública como dívida de valor não deu bom resultado.

Mas o propósito vai além, porque a lei repristina também a conversão da multa em prisão. Não para todos, bem entendido. Para o solvente, ela se transforma em perda de bens e valores; para o insolvente em prestação de serviços que, descumprida, leva à prisão.

Ah, a seletividade...

 

2-) A legislação penal de emergência

 

A ideia de que o Direito Penal é a solução para a criminalidade (que não deixa de ser nada mais do que o triunfo da esperança sobre a experiência) vem norteando o populismo legislativo há décadas.

A criação de tipos penais que buscam atingir a todo custo novas situações, ainda que a tutela penal seja excessiva (e por isso mesmo jamais estiveram dentro dela) ou tornar mais ampla sua abrangência, mais rigorosas suas penas ou seus regimes, tem claro comprometimento com essa submissão à “opinião pública”, rendição ao populismo midiático, que a edição de um Código Penal, estruturado e balanceado, deveria impedir.

Ao trazer o populismo penal para dentro do Código, os autores não apenas o legitimam, mas prolongam a sua sobrevivência. Não dá mais para dizer: quando o novo Código vier, esses tipos de ocasião serão revogados. Não, os tipos fazem parte agora de um Código de ocasião.

O Código Penal acolhe os tipos recentemente criados pelo Estatuto do Torcedor –que chega a punir com prisão de um a dois anos quem invadir local restrito aos competidores (art. 249), entre outros tipos criados com a nítida preocupação de preparar a legislação para os grandes eventos. É sinal de que a realização da Copa do Mundo e das Olímpiadas prometem nos deixar um legado pior ainda do que apenas um esperado déficit.

A mesma preocupação de exibir aos visitantes uma legislação “moderna e eficaz”, pode ter levado os autores a tipificar o terrorismo (art. 239) de uma forma tão ampla e ao mesmo tempo genérica. Sim, o projeto não esquece de agravar a pena quando a conduta é praticada por arma de destruição em massa, mas a abrangência do delito sugere que a preocupação dos autores não foi propriamente o inimigo externo.

O terror pode, como uma novel Lei de Segurança Nacional, atentar contra o Estado democrático, ser causado por razões políticas ou ideológicas, e se restringir a condutas como a de manter alguém em cárcere privado ou invadir qualquer bem púbico ou privado. Será isso mesmo o terrorismo?

Não é preciso ir longe para inferir o potencial de criminalização de movimentos sociais que a nova legislação contém.

O antídoto do projeto, a esse respeito, é claramente insuficiente. A causa de exclusão esta lançada assim: “Não constitui crime de terrorismo a conduta individual ou coletiva de pessoas movidas por propósitos sociais ou reivindicatórios, desde que os objetivos e meios sejam compatíveis e adequados à sua finalidade”.

A contrario sensu, portanto, caracteriza-se terrorismo se o juiz entender que os objetivos e meios do movimento social são incompatíveis e inadequados à sua finalidade. Risco grande, portanto.

E a punição ao terrorismo se amplia também para os lados, punindo-se quem dá abrigo ou guarida (seja lá o que isso queira dizer) a pessoa de quem se saiba ou se tenha fortes motivos para saber, que tenha praticado ou esteja por praticar crime de terrorismo -criando uma inédita figura culposa de favorecimento, com a bagatela de quatro a dez anos de reclusão (art. 241).

Por fim, nada menos conforme a esse direito penal da emergência, do que a causa de aumento do art. 242, do tipo de terrorismo, segundo a qual as penas serão aumentadas se as condutas forem praticadas durante ou por ocasião de grandes eventos esportivos e etc. Aqui se explica um pouco o porquê da urgência de aprovação do projeto.

Bullying e stalking são temas da moda e nada melhor do que aproveitar o prestígio e estender a eles a tutela mágica do Direito Penal. Que Direito Penal será esse, devem se perguntar os autores do projeto, se não pode ir a todos os campos, perscrutar todas as asperezas, intervir em todos os conflitos, mesmo os mais íntimos?

A inépcia dos tipos consegue ser ainda pior que a decisão de criminalizar.

A “perseguição obsessiva ou insidiosa” (art. 147) destina-se a tutelar a liberdade, mas não se sabe exatamente qual e por isso atira para todos os lados, protegendo a “integridade psicológica”, a “capacidade de locomoção” e a “perturbação a esfera de liberdade”, seja lá o que isso possa significar.

A intimidação vexatória, por sua vez, é pródiga nos verbos, em que reúne condutas bem distintas: intimidar, constranger, ameaçar, assediar sexualmente, ofender, castigar, agredir, segregar. Tira-se de barato que repete o erro da criminalização do assédio sexual, em que constranger, tradicional verbo transitivo direto e indireto na linguagem do direito penal, vem esvaziado de seu conteúdo.

A questão mais grave, porém, é que todas essas condutas, a serem praticadas direta ou indiretamente (o que as torna ainda mais inimagináveis), devem ocorrer com o agente valendo-se de pretensa situação de superioridade.

E aqui o busílis é mais sério, pois ou o agente se vale de uma situação de superioridade (e teremos a criminalização do assédio moral, comum em especial nas relações de trabalho) ou apenas projeta sua própria e inexistente situação de superioridade (e o crime se aproxima, por exemplo, de alguma forma qualificada de injúria).

Mas nada representa melhor a emergência do que a criação do crime de milícia –dirigido a combater a situação das comunidades dominadas do Rio de Janeiro. Incapaz de estipular por si só condutas abstratas, o projeto resolve explicá-las ao público leigo, com a discutível técnica de exemplificação:

“Se a organização criminosa se destina a exercer, mediante violência ou grave ameaça, domínio ilegítimo sobre espaço territorial determinado, especialmente sobre os atos da comunidade ou moradores, mediante a exigência de entrega de bem móvel ou imóvel, a qualquer título, ou de valor monetário periódico pela prestação de serviço de segurança privada, transporte alternativo, fornecimento de água, energia elétrica, venda de gás liquefeito de petróleo, ou qualquer outro serviço ou atividade não instituída ou autorizada pelo Poder Público, ou constrangendo a liberdade do voto”.

O projeto faz crer, e nisso reside seu defeito, que a situação só pode ser punida pela criação de um novo tipo –este sim eficaz. Mas a ânsia de explicar as possibilidades de extorsão fragiliza a própria compreensão do “domínio ilegítimo de território”.

A dificuldade sempre residiu em questões de prova e, mais precisamente, em enfrentar o poder, não na ausência de tipo, eis que a cumulação de extorsões e formação de quadrilha sempre foi juridicamente viável.

Mas a ideia da autoria incorporada pela cláusula do domínio do fato, a tipificação do enriquecimento ilícito (plasmando a inversão do ônus da prova), a ampliação do início da execução para atos preparatórios imediatamente anteriores, segundo o plano do autor, enfim, tudo está a indicar que, como a jurisprudência que vem se formando nos momentos de exceção, a exigência da prova tende a ser cada vez mais flexível.

O futuro parece não reservar ao direito penal a mesma rigidez do sistema de provas, fato de que, certamente, vamos nos arrepender no futuro, quando se espalhar para todos os tipos. Princípios, dificilmente se regeneram, uma vez rompidos.

O direito penal de emergência se junta ao direito penal do autor, ademais, quando o projeto estabelece circunstância qualificada pela participação de ex-agente do sistema de segurança pública (supra item 4). E, a despeito de ser um crime que se dirige fundamentalmente à intimidação coletiva (pelo tal ‘domínio territorial’ ou sobre a comunidade) a pena da milícia pode ser ainda aumentada quando a violência ou grave ameaça recair sobre pessoa incapaz, com deficiência ou idoso –como se fosse possível a existência de uma comunidade sem incapazes, idosos ou deficientes.

Quando a causa de aumento é obrigatória, representa na verdade, um disfarçado aumento de pena. E aí sim, o legislador da emergência pode se dar por satisfeito, porque o novo tipo já atingiu a pena máxima de trinta anos. Não há mais por onde crescer –quem poderá lhe acusar de não ter resolvido definitivamente o problema das milícias?

E como convém a um país que cresce no cenário internacional e passa a ser disputado como destino de imigrantes, nada melhor do que prevenir e dobrar as penas de quem, por exemplo, oculta clandestino ou estrangeiro irregular. Bush manda lembranças.

 

3-) O desbalanceamento dos crimes

 

Uma das principais funções da codificação, na área penal, é justamente o balanceamento dos crimes.

A edição de leis extravagantes, em momentos distintos, com preocupações imediatistas em regra impede esse equilíbrio da tutela dos bens jurídicos. A questão costuma se resolver com os códigos, quando todos os tipos podem ser reequilibrados no mesmo momento, condensando as diversidades de tratamento que as influências do tempo marcaram. Desperdiçar essa oportunidade é quase como jogar o esforço de produzir um Código fora.

As lesões corporais, por exemplo, por mais graves que sejam (e o projeto cria lesões graves de diferentes graus) são sempre tênues perto da dimensão de outros crimes, como os patrimoniais ou provenientes da emergência penal. O furto qualificado equivale à lesão dolosa que provoca enfermidade grave e incurável; incapacidade permanente para o trabalho então exercido ou debilidade permanente de membro, sentido ou função.

O roubo de uma carteira equivale à lesão que causa perda de membro, inutilização de sentido, incapacidade para qualquer trabalho ou deformidade permanente. Afinal, entre patrimônio e integridade física, o direito penal nunca teve dúvidas qual tutelar melhor; continua não tendo.

O desnível do sequestro (pena de um a quatro anos) que tutela só a liberdade com os crimes patrimoniais se mantém –profundo, quando se compara com a tutela da mesma liberdade na extorsão. Com a elevação das penas dos crimes contra a honra, torna-se muito mais grave ofender alguém pela internet do que mantê-lo em cativeiro por até quinze dias.

O furto de automóvel, se o objetivo for levar o veículo a outro Estado, é mais grave do que o de uma residência. O bem jurídico tutelado tem pouco a ver com o direito penal -é, na verdade, o interesse das companhias seguradores –porque existe bem mais seguros de automóvel do que residências.

Na mesma linha do interesse de grandes corporações, reside a gravidade mantida aos crimes de violação de direito autoral de videofonograma. O camelô, vendedor de CDs e DVDs piratas, que são basicamente os únicos alcançados pela seletividade do sistema de repressão pela proteção do direito autoral, continuam párias da suspensão condicional do processo.

Na ânsia de aumentar penas, o projeto amplia a punição das falsidades até a sanção de cinco a mais de dez anos (se na atividade comercial, art. 262, § 2º) e revoga a falsidade e uso de atestado e certidão, sob o pretexto de unificar a figura do documento, aumentando sensivelmente a punição que o legislador anterior reconhecera de menor gravidade.

A receptação culposa (art. 166, §3º) também está entre os crimes que teve sua pena ampliada, no caso para se equiparar ao furto doloso –e a receptação dolosa torna-se mais grave do que o próprio furto (que deve gerar no cotidiano forense situações inusitada de réu que prefere confessar ter subtraído o bem, por ser menos grave do que adquirir de quem o subtraiu). Afinal, receptação é crime grave que desassossega a coletividade...

E na figura de lavagem de capitais o projeto fez o que parecia inimaginável criando uma elasticidade na pena ainda maior que a do tráfico de entorpecentes e que beira a inconstitucionalidade, pois oscila nada mais do que entre o mínimo de 3 e o máximo de 18 anos.

A preocupação ecológica cria outros tantos monstros –além da já propalada omissão de socorro animal.

Nenhum deles parece mais desproporcional do que crime contra a fauna do art. 388, com o acréscimo de seu §5º (caça profissional) que, entre outras barbaridades, leva uma conduta como perseguir espécimes da fauna silvestre a atingir a pena de seis a doze anos de reclusão -praticamente a mesma do homicídio, mas sem a necessidade de um cadáver, nem mesmo do mundo animal.

Talvez se equivalha à promoção ou mera participação de confronto de animais que possa levar à mutilação ou morte (art. 395). Se ocorre a lesão grave do animal (nesta rinha de galo criminalizada) a pena mínima é de três anos de reclusão (§1º); mas se a mesma lesão for praticada intencionalmente no ser humano, com debilidade permanente de membro, sentido ou função, ou causando enfermidade grave e incurável (por exemplo, art. 129§2º), a pena mínima é de apenas dois.

Mas o desbalanceamento do direito penal não se dá apenas pelo quantum, mas também pelo conteúdo da proibição.

E nesse sentido, o projeto corrompe seus próprios princípios, ao fazer tábula rasa da ofensividade que trouxe como estandarte na Parte Geral, com a expansão das hipóteses do perigo abstrato, a coqueluche do direito penal preventivo.

É o caso mais especificamente do crime contra o patrimônio de “Dano aos dados informáticos”, por equiparação. Na mesma pena de quem destrói, danifica, deteriora, etc, incide quem produz, mantém, vende, obtém, importa ou distribui... programas e outros dados informáticos, destinados a destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia (art. 164, § único).

É a transposição para o campo cibernético da antiga contravenção de posse de gazua ou chave falsa, de discutível constitucionalidade. O legislador optou por dar um passo atrás, tornando punível a simples conduta de obter ou manter um programa desse tipo, inaugurando a criminalização do perigo abstrato ao patrimônio.

A punição do perigo abstrato também se repete na sabotagem informática (art. 210), em que à ação do hacker se equipara quem produz, mantém, vende, obtém, importa ou distribui códigos de acesso –mais ou menos como punir o fabricante da arma pelo crime posterior com ela empregado, ou o porte de arma com a mesma pena do crime de dano com realizado com o instrumento.

Antecipação de tutela, aliás, que o projeto herda acriticamente do ECA, em relação à posse, aquisição e armazenamento de fotografia ou vídeo com sexo envolvendo crianças e adolescentes (art. 496)

E a ânsia de antecipação do punir acaba por provocar inexplicáveis inversões, como o fato de que guardar moeda falsa seja punida com pena de 3 a 8 anos (art. 259, §2º), ao passo que a aquisição de produtos de pequeno valor com ela só é punido com pena de 1 a 4 anos de prisão.

No estelionato massivo, outra badalada inovação, o projeto contempla a ideia de causa de perigo (destinada a produzir efeitos em um número expressivo de vítimas) para aumentar a pena em um crime de dano.

E na tumultuada legislação de trânsito, a que mais sofre alterações de emergência, na direção sob influência de álcool, o projeto optou pela solução de manter convivendo um tipo de perigo abstrato (sendo manifesta a incapacidade para fazê-lo com segurança) e outro de perigo concreto (expondo a dano potencial a segurança viária), ambos com a mesma pena e ainda sem prejuízo da responsabilidade por qualquer outro crime cometido.

A redação sugere a possibilidade de uma cumulação inédita, na mesma ação, de crime de dano, perigo concreto e perigo abstrato –o que certamente será repelido pela jurisprudência (quem sabe mais adiante acusada de amolecer com os criminosos de trânsito).

 

4-) O direito penal do autor

 

Da mesma forma que a proliferação dos crimes de perigo abstrato esvazia a promessa da ofensividade, os resquícios de direito penal do autor corrompem a vinculação da pena à culpabilidade, merchandising do projeto estampado em seu artigo primeiro.

Se o agente é punido mais pelo que é, do que pelo fez, a noção de culpabilidade perde força –trata-se de carta marcada antes mesmo de ser sorteada.

Os resquícios desse despropósito se encontram ocultos, disfarçados, mas ainda presentes no projeto.

A fúria punitiva que determinou a criação da associação qualificada pela milícia produz um exemplo virtuoso –a causa de aumento, que praticamente faz dobrar a pena, se a associação é integrada por agentes ou ex-agentes do sistema de segurança pública ou das forças armadas, ou por agentes políticos (art. 256, §3º).

É certo que a realidade demonstra há tempos que o crime organizado se escora no próprio Estado (daí a dificuldade de punição, mais do que a falta de um tipo), mas querer combatê-la com um apenamento de emergência chega às raias do absurdo –a qualificação por ser o autor um ex-agente do sistema de segurança (ou seja, nem sequer pelo que é, mas pelo que foi) não se coaduna minimamente com o conceito de direito penal do fato.

E eis que o direito penal do autor também ressurge no ponto alto do projeto, a descriminalização do porte para uso pessoal de entorpecente. Entre os critérios para determinar se a droga se destinava a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, à conduta, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, bem como às circunstâncias sociais e pessoais do agente.

Ao introduzir no tipo penal as circunstâncias sociais e pessoais do agente como elemento distintivo do porte para uso pessoal ou comércio, recria-se a ideia de que o agente pode ser punido pelo que é (ou foi) e não pelo que fez.

Embora os indícios apontem no sentido de que os autores até tenham agido de boa-fé, não afastam, ou ao revés, estimulam, que determinado agente seja ao final punido pelo tráfico, havendo alguma espécie de dúvida em razão, por exemplo, de uma reincidência. A partir do momento em que uma reincidência pode ajudar a definir o crime praticado em outro delito, o direito penal se afasta do fato –em um caminho sem volta.

E, a propósito, o Código também perde a oportunidade de corrigir uma outra invasão do direito penal do autor, com a importação quase sem alterações, da recente lei de entorpecentes (estatísticas do Departamento Penitenciário estipulam que a proporção de presos por tráfico de entorpecentes simplesmente dobrou depois de sua edição).

A hipótese do tráfico privilegiado, que permite a redução de 1/6 a 1/3, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre associação ou organização criminosa de qualquer tipo.

Temperar a punição, nestas situações, é um dos poucos avanços da Lei de Entorpecentes. Mas, uma vez que o dedicar-se a atividades criminosas é quase letra morta (criando uma circunstância não apreciável para além da reincidência ou primariedade), e a integração a organizações criminosas em regra de difícil prova, a redução tem mesmo sido expressivamente vedada nos casos de reincidência (ou de maus antecedentes).

E nestes casos, a aplicação do direito penal do autor exsurge com evidência. A diferença entre uma pena de 5 anos a quem não é primário (ou não tem bons antecedentes) e a de 1 ano e 8 meses a quem é, é tão profunda que se pode dizer, sem chance de erro, que dois terços da pena são decorrentes não do tráfico que o agente praticou -mas do reincidente que ele é.

E a reincidência aqui (ou os maus antecedentes) nem são específicos: uma condenação anterior por porte para uso pessoal, por exemplo, tem sido aceita na jurisprudência para impedir a redução (e triplicar o valor da pena se assim não fosse). A ofensa à proporcionalidade é manifesta.

 

5-) Os pecados da redação

 

No direito penal, linguagem não é apenas instrumento –é também garantia.

A redação do tipo concentra a limitação do poder de punir. O princípio da legalidade é também esvaziado quando a linguagem é vaga ou demasiadamente ampla que deixa de cumprir a função de controle. Neste sentido, o projeto amplia a tendência da segunda metade do século XX na expansão verbal dos tipos, retratando a ânsia de cercar todos os comportamentos possivelmente nocivos, rumo ao direito penal máximo (em que todas as condutas possam ser confortavelmente acolhidas).

Mas os pecados de redação, no caso do projeto, vão além das digressões ideológicas. Circunstâncias legais que invadem competências judiciais, causas de aumento que desrespeitam a lógica do tipo, equiparações dissonantes. De tudo um pouco, se encontra nas redações que não apenas evitaram corrigir erros de legisladores antigos, se solidarizam praticando outros.

Eles até podiam se escusar na pressa, mas tendo sido esta deliberada, feita inimiga não só da perfeição, como do debate, aos autores não lhe será permitida arguir a própria torpeza como atenuante.

Alguns exemplos que uma observação rápida nos permite identificar.

O art. 71, § único, determina que as causas de aumento ou de diminuição terão os limites cominados em lei, não podendo ser inferiores a um sexto, salvo disposição expressa em contrário. Mas se elas terão os limites cominados em lei, a quem é o comando de que não poderão ser inferiores a um sexto? Nem ao próprio legislador que excetua as disposições expressas em contrário (uma delas, aliás, é a causa de diminuição genérica, com a mínima redução de 1/12, a que já fizemos referência).

A multa não depende mais da previsão expressa (decisão no mínimo imprudente) e passa a ser aplicada em todos os crimes que tenham produzido ou possam produzir prejuízo materiais à vítima.

A função da cominação das penas é do legislador, no caso, indevidamente transferida ao juiz (e, portanto, também à instrução do processo) pela cláusula do prejuízo. Mais, a regra do prejuízo potencial é mais ainda indeterminada.

E, por fim, uma questão em aberto: porque condicionar a previsão de multa ao prejuízo da vítima, se a multa será paga ao Estado (Fundo Penitenciário)? Fosse optar pela indeterminação da cominação, seria melhor que estabelecesse multa nos casos de obtenção de vantagem patrimonial pelo agente –respeitando a lógica da cominação anterior.

O projeto cria a distinção, em vários dispositivos, de crime que afete a vida. Supõe-se que quer tratar de crimes com resultado morte (incluindo-se os que não são contra a vida). Teria sido mais razoável que eliminasse uma desnecessária causa de divergências.

A inclusão da violência doméstica como circunstância qualificadora do homicídio é, no mínimo, temerária, pois pode contemplar situações das mais divergentes. Não se trata de forma de execução ou motivação, mas apenas um contexto.

A chance de propagar injustiças (tratamento isonômico de situações díspares) é gigantesca. Tanto que os próprios autores temperaram a redação com o acréscimo da locução em situação de especial reprovabilidade ou perversidade do agente.

A especial reprovabilidade, que é também vaga, se refere mais à aplicação da pena do que propriamente à figura típica, aumentando a indeterminação que esvazia a proteção do princípio da legalidade. Se a conduta é mais ou menos reprovável é questão do campo da censura, ou seja, da fixação da pena pelo juiz, não do estabelecimento da distinção entre a figura simples e a qualificada (com todas as consequências que um enquadramento errôneo produz). E a perversidade já estaria contemplada na qualificadora do meio cruel.

Parece que o legislador compreendeu que a violência doméstica cria situações distintas que não se pode equiparar. Devia ter evitado fazê-lo para os efeitos de criar mais uma dúvida.

A criação da culpa gravíssima (art. 121, §5º) tem um destino específico: evitar a propagação da punição dos crimes de trânsito por dolo eventual. Nesse sentido é justa. Mas é desnecessária a explicitação de exemplos no tipo penal, técnica de redação das mais discutíveis. É certo que as leis devem ser redigidas em linguagem compreensível, mas transformar o tipo penal em explicação para o leigo não é a melhor forma de preservar a formalização do controle e o sentido da tipicidade.

O perdão judicial poderia ser estendido a outras hipóteses ou mesmo servir de cláusula genérica para que o juiz, dosando as consequências que o fato já provocou na vida do agente, pudesse considerar a punição desnecessária. Não foi. O máximo que o projeto chegou foi inserir um causa de diminuição, quando a exposição pelo crime debilitou a privacidade do agente.

A simples alteração de redação dos casos de perdão nos crimes contra a vida só veio a trazer maior indeterminação. Não parece razoável que o parentesco possa servir de causa suficiente para a isenção da pena como indica o ou que a redação do parágrafo 8º faz presumir. É preciso, de toda a forma, um vínculo subjetivo de afeição ou sofrimento.

O projeto faz bem em distinguir atos de violação de outros atos libidinosos; mas o novo molestamento sexual não é de fácil compreensão, especialmente em sua modalidade privilegiada. O tipo básico criminaliza quem, mediante violência ou grave ameaça ou se aproveitando de situação que dificulte a defesa da vítima, constrange outrem à prática de ato libidinoso.

Uma vez que aquele que se aproveita da situação de vulnerabilidade (o bolinar no ônibus lotado, exemplo midiático da exposição de motivos) também está contido no caput, qual seria exatamente o molestamento sem violência ou grave ameaça da figura privilegiada?

O equívoco da redação do assédio sexual não se deve aos autores do projeto. Mas é certo que não a corrigiram. Constranger para o direito penal tem o sentido de forçar (a fazer o que não se quer, no constrangimento ilegal; à prática de ato sexual, no estupro; a fazer ou tolerar que se faça, na extorsão etc). Falta um verbo a que seja a vítima constrangida enfim –até porque constranger ao ato sexual seria estupro.

E o erro da lei de entorpecentes também se mantém íntegro, fixando entre os critérios de aplicação da pena a natureza do entorpecente.

Se o tipo penal só se aplica a substâncias entorpecentes, porque distingui-las por sua natureza?

Isso abre caminho para decisões que apenam de forma mais gravosa o tráfico de cocaína sobre o de maconha e o de crack sobre o de cocaína em pó, por exemplo, como se a fazer, por via jurisdicional, e sem qualquer amparo científico, um ranking de entorpecentes, impreciso e inseguro, aberto, inclusive, a discriminações sociais.

O crime de denunciação falsa é paradigmático. A conduta proibida é dar causa à instauração de investigação ou procedimento contra quem sabe inocente; a causa de aumento amplia a punição se o agente se serve de anonimato. A questão aqui é o absurdo de dar causa à instauração de inquérito policial ou outra investigação por meio de denúncia anônima –o Estado pune o agente por sua própria leviandade.

Mas a redação mais grotesca é a da exclusão do crime de emissão ou distribuição de título ou valor mobiliário irregular (art. 352,  §2º), que fala por si só: não incorre no crime descrito neste artigo o autor que não dispunha de meios razoavelmente disponíveis para ter conhecimento da imprecisão ou falsidade...

 

6-) O esvaziamento do processo

 

O projeto não se satisfaz em engrandecer o direito penal, reverenciado como instrumento eficaz de controle de criminalidade e regulação social. Investe também no esvaziamento do processo.

A pretensão de regular também as normas processuais se insinua ao longo do texto, quando os autores pretendem estabelecer a prova cabível (no delito de direção sob influência de álcool, art. 202, §s1º e 2º), o valor da prova (delação somente será admitida quando acompanhada de outros elementos probatórios convincentes, art. 106, III) ou quando se assume na função de definir o recebimento de denúncia (assim considerado o momento posterior à resposta preliminar do acusado, art. 348, §4º).

Mas é a criação do instituto da barganha (sintomaticamente inserido no mesmo título que a colaboração com a justiça¸ art. 105) em que a pretensão de esvaziar o processo se mostra mais efetiva e, infelizmente, eficaz.

O projeto faculta às partes, no exercício da autonomia das suas vontades (pressupondo-se, lógico, o equilíbro entre o Estado e o indivíduo acusado de um crime e muitas vezes preso), a celebração de acordo para aplicação imediata das penas, antes da audiência de instrução e julgamento (art. 105).

O projeto exige a confissão do acusado, antes da audiência de instrução (ainda que o interrogatório pela lei processual só tenha lugar após a oitiva das testemunhas) e em troca entrega a ele a obrigatoriedade de fixação da pena no mínimo legal, a proibição do regime fechado e, se houver acordo com o acusador, também uma causa de diminuição.

O projeto tonifica o poder do Ministério Público (pois sua manifestação, em regra vinculada, é tratada como autonomia da vontade) e estimula a confissão com a promessa de uma pena mínima (e se houver vontade, uma redução). Ignora as condições em que essa autonomia da vontade possa estar presente, nas circunstâncias de uma acusação e admite, enfim, que alguém possa cumprir pena de prisão sem processo.

O desmantelamento do processo tem o álibi da vontade do réu, transformando-o de irrenunciável a disponível, e confere plena eficácia à confissão (o que décadas de refinamento da doutrina buscaram evitar).

A ideia do processo como garantia, que informa o conteúdo de um processo penal democrático, se esvai e tal como o direito penal, é substituído pela utilitária noção da eficácia. Civiliza, por assim dizer, o processo penal, reduzindo-o a um acordo de vontades, no qual se sobreleva, em especial, a vontade de não haver processo.

O processo penal como garantia é um bastião essencial para conter o poder punitivo –função última do aplicador da pena. Esvaziá-lo é mais um condimento da expansão do direito penal e, por conseguinte, da redução do controle.

Apostar na eficácia diante da garantia é talvez o mais grave pecado do projeto –uma opção que não tem volta.

 

7-) O projeto pelo projeto

 

O ambicioso projeto de Código Penal é, sobretudo, uma atualização.

Não há profunda alteração de paradigmas. O projeto não abandona a pena de prisão, como sugere sua exposição de motivos –antes, a vulgariza.

Não balanceia a incorporação dos tipos da legislação extravagante como insinua –mas se contamina por ela.

Não introduz um veio teórico definido, embora vá superpondo registros mais modernos (como a imputação objetiva) às teorias tradicionais.

E mesmo quando elenca sua exposição de princípios, a esvazia paulatinamente na individualização de tipos e penas.

Como atualização, insere novidades que são seus maiores pecados e reproduz quase integralmente a legislação mais recente, cujos princípios se chocavam com a própria codificação –e por isso se acomodam tão desconfortavelmente a ela.

É dirigista nas penas, tratando circunstâncias judiciais como agravantes ou causas de aumento e formatando regras para aquelas que deixa a cargo do juiz –mas ao mesmo tempo abre enormes espaços à indeterminação naquilo que é menos indeterminado, como o tipo, a cominação e a progressão.

Enfim, sob o ponto de vista lógico, é o samba do jurista doido. Sob o ponto de vista ideológico, cumpre a tradição do inusitado, ao deixar a esquerda perplexa e a direita enraivecida.

No campo moral, há avanços nítidos, com a revogação da hipócrita casa de prostituição (que a jurisprudência começa a fazer por conta própria), a ampliação das hipóteses do aborto legal, a descriminalização do porte de entorpecentes e a instituição dos novos tipos de eutanásia e ortotanásia. Mas o início do processo legislativo parece ter deixado claro que estes são os dispositivos menos propensos a ganhar força, correndo o risco de terem servido como meros fogos de artifício.

Em certa medida, o processo de construção do projeto antecipou-se às práticas do próprio parlamento que buscou replicar: votações por maioria, concessões recíprocas, temas interditados. Ao final, um término apressado que não condiz com a tarefa de codificar setenta anos de vigência do anterior.

A urgência na votação supõe que a edição do Código é, em si mesma, mais importante do que seu conteúdo –talvez pela propalada necessidade de adequar a legislação a um patamar globalizado, como conviria a um país em franca ascensão e pleno de visibilidade internacional.

Mas será que neste campo tão intimamente ligado aos direitos humanos e aos limites do poder vale a pena avançar neste frenesi, apenas para carimbar o país com uma tal modernidade que talvez, na essência, não seja mesmo a nossa?

Vale a pena entregar garantias, em nome de uma propalada eficácia?